Por que tanta Ritalina e tanto Rivotril?
Médico, psiquiatra e psicanalista explica o que está por trás do uso abusivo desses medicamentos tarjas pretas
Estima-se que 2 milhões de pessoas tenham o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). E é para tratar principalmente desse transtorno que o país se tornou o segundo grande consumidor da Ritalina do mundo, uma droga que faz a pessoa focar, não dispersar. Do lado oposto, há um outro, o Rivotril, campeão de vendas, em primeiríssimo lugar. Sua função é desacelerar, botar para dormir, acalmar. Nesta entrevista, o Dr. Mario Eduardo Costa Pereira reflete sobre esses números, fala sobre o discurso medicalizante, as consequências de um diagnóstico rápido que leva em consideração somente a predisposição biológica sem ver o sujeito na sua individualidade, suas emoções, afetos e a sociedade onde está inserido.
O Brasil é o segundo maior consumidor de Ritalina, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Para que serve a Ritalina?
A Ritalina é o nome comercial do metilfenidato, uma substância antiga, que já se usava desde os anos 1970, nos Estados Unidos, para tratar de crianças muito agitadas com a chamada síndrome de hipercinesia. O metilfenidato é uma anfetamina, é uma droga que tende a deixar a pessoa – quer ela tenha a doença ou não – mais focada, mais centralizada num certo foco de interesse. Por ser uma anfetamina, muitas vezes ocorre o abuso dessa substância como estimulante das funções psíquicas, o sujeito busca sentir-se mais “ligado”, “focado”. Esse efeito ocorre em qualquer tipo de pessoa.
Então, essas crianças ditas hipercinéticas tinham uma melhora do comportamento com esse tipo de medicamento, pois podiam se concentrar melhor em suas atividades, diminuindo sua excitação e dispersão excessivas.
Dessa forma, o metilfenidadto pode ser um medicamento ou pode ser uma droga de abuso. Por isso ela é muito controlada. É uma droga que saiu um pouco de moda, entrando no esquecimento durante certo período, até que se descreve uma forma nova dessa síndrome hipercinética, que é o famoso Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
O que é o TDAH?
É basicamente um quadro, que pode começar na infância, com a criança se mostrando agitada, hiperativa e tendo muita dificuldade de focalizar a atenção num único alvo. Ela é muito dispersa, a criança parece elétrica, inquieta. Tem dificuldade de se submeter a regras, tem vários interesses simultaneamente, acaba tendo dificuldade de socialização, de entrar em contato com outras crianças, problemas de escolarização,… Mas não é uma doença que você tem um padrão biológico único.
Há um grau de intensidade muito variado, de uma coisa discreta à uma coisa muito intensa. E se viu também que, do ponto de vista neurobiológico, essas crianças têm um funcionamento diferente, e, pelo ponto de vista genético, também têm padrões distintivos. Duas crianças com TDAH podem não ter os mesmos genes predisponentes uma da outra. Mas isso não quer dizer que seja algo apenas genético.
Quais são os outros fatores além da predisposição biológica?
Os fatores que são da vida precoce da criança, experiências emocionais primárias que formam um certo molde de padrão de funcionamento que vai se estabilizando. Posteriormente, dependerá dos fatores de vida nos quais irá se encontrar essa criança apresentando uma configuração precoce que facilita o desencadeamento do quadro. É importante lembrar que essa droga, essa anfetamina, que traz um foco, é muito útil para o mundo que a gente vive. Mesmo sendo um tratamento muito inespecífico, por não ter um padrão único, como falei, já que tem um espectro grande, desde comportamentos mais discretos até mais intensos, a verdade é: se você der o metilfenidato a essas crianças ou a qualquer outra pessoa, todas elas tendem a ficar mais focadas.
E na nossa sociedade, na nossa cultura, é muito importante, muito valorizado que uma criança vá para a escola e que tenha um bom rendimento escolar. Precisa, por exemplo, aprender inglês com 5 anos de idade porque senão ela não vai poder entrar no mercado de trabalho. Logo, se ela contém um conjunto de fatores predisponentes a essa condição tão desfavorável para os padrões contemporâneos de socialização e de participação no mercado de trabalho, então está doente. Em um outro mundo, operando segundo outras modalidades de realização da existência humana, talvez a leitura social desses comportamentos fosse bem diferente.
Então, não é uma coisa que funciona sozinha, depende de vários fatores, inclusive de como isso é lido socialmente. Acoplada à predisposição biológica e da história subjetiva singular de cada um, você tem um estado de coisas ligado, digamos, ao espírito do tempo, do qual depende em larga medida a valorização de um grupo de comportamentos e de estados afetivos como “doentios”.
Como assim?
Vivemos num mundo que tem que funcionar numa certa lógica de produtividade, de individualismo, de competição cada vez mais acirrada e com muitos ideais de realização. Realização é atingir certo padrão de consumo, de padrão financeiro, de sucesso pessoal, profissional.
Em geral, interpreta-se o sujeito com uma boa adaptação social aquele que está preparado para esse jogo da competição, do individualismo, do foco. E o tratamento com o metilfenidato faz com que o comportamento vá nessa direção. Por isso tem que ser um diagnóstico rápido e que coloca o mínimo possível em questão o mundo e o próprio sujeito. ‘O mundo é isso daí, amanhã de manhã você tem que trabalhar, tem que competir, tem que se realizar, tem que pagar as contas, ter sucesso individual…’. E o sujeito não entra em questão, tudo aquilo que está implicado no comportamento da criança, se ela tem ou não tem limites em casa, se tem situações emocionais difíceis, se a escola está ruim, se ela está sofrendo bullying, não é olhado.
Com isso, todos ficam poupados de se verem implicados de alguma forma com essa patologia, tudo se resumindo a um infortúnio biológico, ratificado pela ciência e pelo discurso médico.
Ou seja, o diagnóstico dá um certo alívio.
Sim. Num discurso medicalizante as coisas se colocam mais ou menos assim: “Trata-se de uma doença que se explica totalmente através de sua matriz biológica. Não adianta vocês ficarem criando fantasias psicológicas, sociais e tudo o mais porque isso daí é mera elucubração sem fundamento”.
É por isso que muitas vezes o sujeito busca o diagnóstico em primeiro lugar, o diagnóstico dá uma espécie de alívio de desimplicação: “Bom, não sou eu, é a biologia. Logo, está tudo bem lá em casa, está tudo bem na escola, está tudo bem no mundo. É apenas o infortúnio de uma doença. Todos nós somos vítimas de um mal do qual somos meras vítimas passivas, sem qualquer implicação pessoal, política ou social em sua manifestação”.
Assim, a ordem do mundo e minhas questões pessoais não ficam de maneira alguma interpelada pela doença. Há algo de estranho nessa maneira de conceber as coisas, não? As estatísticas mostram que de 10% a 20% das crianças teriam esse diagnóstico. Aí você fica pensando: “Pôxa, então, no final das contas, a natureza é muito malfeita! Um quinto das crianças teria esse transtorno, algo que é completamente contra a seleção natural”. Tem alguma coisa estranha nessa história.
O que seria?
Se fizermos uma análise apenas objetiva e materialista desse estado de coisas: quem se beneficia com a redução desse transtorno exclusivamente a suas coordenadas biológicas? Em primeiro lugar, evidentemente, aqueles que vendem metilfenidato. Com a profusão do diagnóstico e do discurso que reduz o TDAH a suas bases biológicas, essas empresas multiplicaram suas vendas em centenas de vezes. E quem entrava com a responsabilidade direta por essas crianças? A responsabilidade virou uma responsabilidade técnica. Hoje é uma responsabilidade do diagnóstico médico. A escola virou vítima disso também.
Se você constrói todo o discurso do TDAH em cima da materialidade biológica, você despreza o fato de isso não se inscrever dentro de uma cultura, como se isso não se inscrevesse dentro de uma vida familiar, como se isso não se inscrevesse dentro de uma história pessoal, psíquica, no interior de uma sociedade com seus padrões próprios de realização humana… Eu não estou dizendo que não existam fatores biológicos fundamentais para o desencadeamento desse padrão de funcionamento mental e comportamental, eu estou dizendo que você não pode reduzir uma patologia a seus fatores biológicos. A gente já conheceu isso, por exemplo, na síndrome de Down.
O que aconteceu?
Nessa situação patológica, ninguém discute a participação de um fator biológico determinante: a trissomia do cromossomo 21. Mas, a verdade é que, provavelmente, de todos os transtornos psiquiátricos da infância, a síndrome de Down foi a que teve a melhor evolução dos últimos 40 anos porque há 40 anos atrás o pediatra dizia para a família: “Olha, seu filho nasceu com uma alteração cromossômica incurável e essa alteração cromossômica faz com que ele venha a ter um retardo mental grave, problemas físicos de saúde muito sérios e ele deve morrer cedo embrutecido mentalmente”.
As famílias e o Estado, se sentindo na responsabilidade de cuidar dessa síndrome, criaram aquelas casas de acolhimento para essas crianças. Elas eram colocadas lá precocemente e, de fato, acabavam morrendo cedo, abandonadas e com retardo mental. Qual foi o grande tratamento? O grande tratamento não foi curar a trissomia do 21, ela continua lá até hoje. O que mudou foi nossa mentalidade relativamente a essas crianças e a essa síndrome. Não se diz mais: “Ele tem uma trissomia que vai levar necessariamente ao embrutecimento mental e a uma morte precoce”. É justamente porque ela tem essas alterações que nós precisamos pensar em novas estratégias de socialização, de educação, mais apropriadas para a condição delas.
É possível auxiliar para que elas se desenvolvam segundo modalidades diferentes de vida pessoal e de inserção na cultura. Passamos a conceber que existe uma vida interessante e digna de ser vivida para essas crianças, segundo outras coordenadas de educação, de formação e tudo o mais. E hoje em dia a gente vê, aquela criança que até pouco tempo atrás morria com 18 anos de idade, hoje tem expectativa de vida superior a 60 anos. Podem casar, podem desempenhar atividades profissionais, participam da vida cultural, social, etc, … E a trissomia está lá. Nesses casos, o fator biológico é evidente, determinante e incontestável. Só que uma coisa é o nível biológico, outra coisa é o nível patológico.
A síndrome de Down é um exemplo da enorme distância que existe entre a alteração biológica e sua manifestação patológica e efetiva. Bom, o quanto a gente não está fazendo com essas crianças com TDAH, exatamente o que nós fazíamos com essas crianças com síndrome de Down, ao reduzirmos sua patologia a suas bases biológicas?
Isso é grave e mostra a urgência de se ampliar o olhar sobre o TDAH…
Isso, ampliar o olhar! No meu ponto de vista, o que a gente tem hoje é uma cristalização do olhar. Não se trata de maneira nenhuma de negar o fator biológico, nem da importância do tratamento farmacológico, mas, o que a gente vê hoje é uma certa proposta, supostamente validada pela ciência, de que o olhar certo para enquadrar essa patologia é reduzi-la aos fatores biológicos. É a mesma coisa que reduzir a síndrome de Down à trissomia do 21. A síndrome de Down, comparada em termos de fatores biológicos, é um milhão de vezes mais evidente que o TDAH. Mas, então, se na síndrome de Down foi possível fazer tanto apenas mudando nosso olhar sobre essa condição clínica, imagina com quem tem o TDAH.
A longo prazo, quais as consequências disso?
A consequência principal é que você reduz aquela situação patológica às suas coordenadas biológicas. A criança acaba sendo uma portadora crônica de uma doença e a gente fica surdo para poder escutá-la como um sujeito singular e incapazes de apreender a participação de outros fatores pessoais, familiares, escolares e sociais na manifestação do transtorno.
Hoje, paradoxalmente, o diagnóstico TDAH é quase um atestado médico de que está tudo bem na família, na escola, na sociedade, que aquela criança não está com conflitos pessoais, que não tem traumas, que não tem sofrimento emocional, que não tem marcas da vida. O que você faz é parar de escutar de maneira ampla a família, a escola, o sujeito, a nossa vida social… Então, tem consequências sérias. Nas últimas décadas, os critérios utilizados para a maior parte dos transtornos mentais têm sido ampliar a inclusão em alguma categoria diagnóstica.
Acho que agora podemos falar sobre o Rivotril. O que é o Rivotril?
Em grande parte, a mesma coisa que a Ritalina só que com o polo contrário. O Rivotril é um tranquilizante e usado para tratar do sono também. É o nome comercial de uma substância química, o clonazepam. Tem várias outras marcas. Estamos aqui falando de uma marca específica que é a marca mais conhecida, mais importante que produz o clonazepam.
Em primeiro lugar, ele responde a algo que é muito inquietante. Se você pegar as estatísticas, mais ou menos um terço das pessoas ao longo do ano tem problemas para dormir graves. Aí você fica pensando: ou os transtornos naturais do sono também são um desafio à seleção natural, porque indivíduos que dormem pouco estão menos preparados para a sobrevivência, ou isso é uma espécie de sintoma do mundo. Como vivemos num mundo de uma lógica capitalista, você não pode dormir demais porque se você dorme demais o seu competidor está lá, estudando, trabalhando e vai acabar tomando seu lugar. Mas, você não pode dormir de menos porque senão você não rende.
Você tem, então, medicamentos para dormir e você tem anfetaminas para manter o indivíduo ligado. Criou-se uma espécie de tecnologia do sono e da produtividade pessoal. Com isso, aumentam o consume de drogas psicoestimulantes, tanto quanto das drogas para dormir.
Então o que a medicina tem feito ultimamente é prover drogas que agem sobre esses sintomas, que tem a ver com um misto de biologia e com o tipo de cultura e sociedade que a gente tem. Hoje você pode perfeitamente dar um diagnóstico exato para o tipo de insônia que a pessoa tem e fazer um tratamento que ela consiga dormir, sem que para isso em nenhum momento seja necessário perguntar para ela: “Mas o que está te tirando o sono?”.
O mundo interno é completamente desprezado.
Eu diria, na questão da insônia, o mundo interno que faz parte do externo. Um transita com o outro. Hoje a gente tem farmácia 24 horas, banco 30 horas, a ‘cidade que nunca dorme’, ‘a gente tem que acompanhar o mercado financeiro do Japão no meio de nossa madrugada, pois a essa hora ele já abriu por lá’, como se isso fosse uma grande qualidade. Com o mundo globalizado, você tem uma desestruturação dessa ordem natural do sono. É claro que isso incide no indivíduo, mas o fato de estourar no indivíduo não quer dizer que ele seja sede única do seu mal. É algo que tem a ver com ele e que tem a ver com toda essa lógica. Ele tem que acordar cedo de manhã, em boas condições porque senão ele não consegue nem competir nem produzir. Então, por medo de dormir pouco, ele vai lá e diz para o médico: “Doutor, eu tenho que dormir”.
Se ele vivesse em um mundo Macunaíma, no qual se eu acordar às 6h da manhã ou ao meio-dia é a mesma coisa, ele está pouco se lixando. Terminou aquela coisa romântica do boêmio, que no meio da semana ia para um samba até de madrugada. A gente não vive mais nesse mundo porque é inviável. Hoje se você não está num nível de performance, de competência cada vez maior, você está fora do mercado. É claro que se você olhar somente pela lente da alteração neurobiológica, você vai encontrar fenômenos neurobiológicos.
Mais uma vez: eles são superimportantes, mas eles ocorrem no interior de uma certa lógica mundial, uma certa leitura do que é normal e do que é patológico, do que é desejado e indesejado, do que é adaptação e do que não é.
Nós, portanto, que fiquemos atentos para compreender que estamos inseridos dentro dessa lógica para poder optar em entrar nessa ou não, não é mesmo?
E ficar atento também de como bem pesar o discurso da ciência e o discurso da medicina. São discursos muito importantes, mas você resumir o ser humano à matriz biológica é reduzir a síndrome de Down à trissomia do 21.
Você gostaria de dizer algo mais?
O que eu gostaria de transmitir é isso. Eu não tenho de forma nenhuma uma posição anti- científica ou anti-medicamento, mas esses são meros instrumentos de um projeto terapêutico e de uma leitura do campo especificamente patológico. O fármaco – como dizia o Platão – pode ser um remédio ou um veneno. Depende do discurso que vai junto com ele.
Por exemplo, no caso de uma insônia muito grave, eu como médico digo ao meu paciente: “Tome esse remédio, ele vai trazer alívio a seu sofrimento. Mas o que será que está acontecendo com você?”. Colocar as coisas dessa maneira é bem diferente de simplesmente se dizer: “Tome esse remédio, porque é isso que vai resolver o seu mal, que se explica integralmente em seu nível biológico”. É a mesma substância, mas você dá enquadramentos totalmente diferentes para seu uso.
Na primeira, você solicita o sujeito a se implicar na sua patologia e na outra o médico se transforma em uma espécie de fiador científico de sua desimplicação. O médico precisa ter um contato humano com seu paciente, e isso vai bem além da compaixão e da presença encorajadora. É preciso escutá-lo como um sujeito singular, com sua própria história e circunstâncias, permitindo que seu paciente encontre na relação médico-paciente um espaço para se expressar como sujeito único, com sua história, impasses, memórias, cicatrizes emocionais e desejos. Um paciente não é redutível à condição de mero objeto do saber científico do qual o médico seria teoricamente o legítimo detentor.
O desafio de toda medicina não é o de meramente curar a doença biológica, mas o de auxiliar o sujeito a superar sua condição especificamente patológica.
Dr. Mario Eduardo Costa Pereira é médico, psiquiatra e psicanalista. É também professor titular de Psicopatologia Clínica pela Aix-Marseille Université e livre-docente em Psicopatologia do Departamento de psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (FCM-UNICAMP). Além de professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp, onde dirige o Laboratório de Psicopatologia: Sujeito e Singularidade (LaPSuS-Unicamp). Dr. Mario é autor de Psicopatologia dos Ataques de Pânico e Pânico e Desamparo, ambos lançados pela editora Escuta.
Contato: mpereira@fcm.unicamp.br