Desvendando relacionamentos tóxicos

Como lidar com relações doentias?

Relacionamentos tóxicos

O termo “relacionamentos tóxicos” começou a ganhar popularidade nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 1990 e 2000, à medida que o interesse por saúde mental e relacionamentos interpessoais aumentou. Embora o conceito de relacionamentos prejudiciais exista há muito tempo, a expressão passou a ser mais utilizada para descrever dinâmicas onde há abuso emocional, manipulação, ou mesmo comportamentos nocivos entre os parceiros. Ao entendermos o que caracteriza os relacionamentos tóxicos, começamos a trilhar o caminho para relações mais saudáveis. Nesta entrevista, a psicóloga clínica Letícia Giovelli explora os mecanismos dessas relações doentias e propõe alternativas para transformá-las em experiências que realmente nutram e inspirem.

1. Letícia, primeiramente, como você definiria um relacionamento tóxico?

É aquele relacionamento onde, em vez de crescer juntos e florescer, um ou ambos acabam drenando a energia do outro, com brigas constantes, manipulações ou sentimento de culpa e insegurança. Um relacionamento em que, uma ou ambas as partes, não se sentem respeitadas, valorizadas ou emocionalmente seguras. Esses relacionamentos tendem a ser desgastantes, repetitivos e prejudiciais à saúde emocional. Características comuns incluem manipulação, controle, falta de respeito pelos limites do outro, ciúmes excessivos e desvalorização constante. E não, eles não acontecem apenas entre casais; podem surgir em amizades, relações familiares e até mesmo no ambiente de trabalho.

2. Quais são os sinais mais comuns que indicam que alguém está em um relacionamento tóxico?

Os sinais mais comuns incluem sentimentos constantes de culpa, medo ou ansiedade ao lidar com a outra pessoa, além de se sentir inferior, desvalorizado ou sem poder de decisão. A manipulação emocional, o controle das ações ou decisões do outro, e comportamentos de isolamento – afastar a pessoa de amigos e familiares – também são grandes indicadores de toxicidade.

3. Como funciona a dinâmica de um relacionamento tóxico?

A dinâmica costuma ser cíclica e envolve padrões de abuso emocional, psicológico ou, em casos mais graves, físico. Pode haver uma fase inicial de aparente harmonia, seguida de tensões crescentes, conflitos ou abusos, e depois uma fase de reconciliação, em que a pessoa tóxica tenta compensar o comportamento.

Essa dinâmica cíclica, de altos e baixos no relacionamento torna tudo ainda mais difícil. Afeto, amizade e carinho começam a se misturar com desrespeito, manipulação e agressividade tornando a relação confusa. Perceber essa dinâmica confusa é necessário para poder dar os primeiros passos para romper esse ciclo tóxico.

6. Existe um ciclo que as pessoas costumam passar em relacionamentos tóxicos? Como ele se manifesta?

Sim, existe um ciclo comum, que pode ser descrito como o “ciclo do abuso”. Ele começa com uma fase de tensão crescente, seguida de um episódio de abuso (emocional, verbal ou físico). Depois, vem a fase de “lua de mel”, onde a pessoa abusiva pede desculpas ou age de forma amorosa para reconquistar a confiança. Esse ciclo se repete, com a intensidade das fases variando, mas mantendo a pessoa presa na esperança de que as coisas vão mudar. Alguns pacientes chegam na psicoterapia arrasados, depois de anos e até décadas presas neste “ciclo do abuso”.

4. Quais são algumas das causas que levam uma pessoa a desenvolver comportamentos tóxicos em relacionamentos?

Comportamentos tóxicos podem ter raízes profundas, muitas vezes ligadas a experiências na infância, traumas não resolvidos ou padrões de relacionamento vistos na família de origem. Se crescemos em um ambiente tóxico, por mais destrutivo que ele seja, é o que soa familiar e a tendência para repetirmos padrões de comportamento é muito comum e acontece motivado por núcleos inconscientes. Daí a importância do autoconhecimento, para tomarmos consciência destes mecanismos inconscientes e podermos tratá-los.

Fatores como baixa autoestima, insegurança, necessidade de controle e medo do abandono também podem levar alguém a agir de forma tóxica.

5. Que efeitos os relacionamentos tóxicos podem ter na saúde mental e emocional das pessoas envolvidas?

Os efeitos são devastadores. Uma pessoa em um relacionamento tóxico pode desenvolver ansiedade, depressão, baixa autoestima e até transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). O relacionamento pode consumir a energia emocional, levando à perda de identidade e à dificuldade em confiar nos outros.

7. Como uma pessoa pode reconhecer que está em um relacionamento tóxico e qual o primeiro passo para sair dessa situação?

Reconhecer que está em um relacionamento tóxico pode ser difícil, pois a manipulação muitas vezes ofusca a clareza. É comum o paciente chegar relatando: “Ele só age assim porque está estressado, normalmente é uma pessoa carinhosa.” Um bom indicador é refletir sobre como você se sente na maior parte do tempo: está em paz ou constantemente em alerta?

O primeiro passo para sair dessa situação é reconhecer que precisa de ajuda. Sozinha é muito difícil, a pessoa costuma se sentir enfraquecida e confusa quanto seus sentimentos e suas escolhas. É importante também aprender a dar nome para o que está sentindo: “estou triste, vivo com medo, me sinto insegura na maior parte do tempo”. Sei que não é fácil enxergar com clareza os próprios sentimentos diante de manipulações, mas ao dar nome às coisas, a pessoa vai se percebendo com mais clareza. Esse é descrito, pelas minhas pacientes, como o momento em que a “ficha cai” e a pessoa percebe sua situação de verdade.

8. Quais são as etapas que uma pessoa pode enfrentar ao tentar se recuperar de um relacionamento tóxico?

A recuperação envolve várias etapas, incluindo o rompimento com a pessoa tóxica, o luto pelo relacionamento, e a reconstrução da autoestima e da confiança. É um processo de autoconhecimento, onde a pessoa precisa resgatar sua identidade e aprender a cuidar das próprias necessidades emocionais. O início costuma ser dolorido, mas durante o processo de autoconhecimento psicoterápico a pessoa costuma descobrir coragem onde antes só havia medo, costuma descobrir amor próprio onde só havia dependência, costuma descobrir riquezas internas onde acreditava não haver nada de bom. É, acima de tudo, um resgate de si mesma e um processo libertador – liberta-dor!

9. Que medidas podem ser tomadas para educar as pessoas sobre os sinais de relacionamentos tóxicos e a importância de relacionamentos saudáveis?

A educação sobre relacionamentos saudáveis deve começar cedo, em casa e nas escolas, ensinando sobre respeito mútuo, limites e comunicação saudável. Costumo dizer que precisamos usar o teste dos 5 sinais. Se há controle excessivo, chantagem emocional, falta de respeito, desvalorização e comunicação agressiva, cuidado! Ligue o alerta e procure ajuda.

Quando a pessoa se sente isolada e tem vergonha de falar do que está passando acaba prolongando o tempo de sofrimento num relacionamento tóxico.  Falar sobre nossos sentimentos com pessoas confiáveis e não ter vergonha de pedir ajuda são essenciais.

Também é importante salientar os sinais que indicam que a relação é saudável como respeito pelas opiniões, sentimentos e limites de cada um, comunicação aberta e flexível, apoio emocional e encorajamento, confiança e liberdade para ser espontânea.  Precisamos de modelos saudáveis de relacionamentos para perceber que eles existem.

10. Quais práticas de autocuidado e desenvolvimento pessoal você recomendaria para alguém que está se recuperando de um relacionamento tóxico?

Gostaria de levar você num mergulho dentro de si mesma. Imagine que você possa voltar no tempo e se encontrar com a criança que você já foi um dia. Feche os olhos e procure perceber como sua criança está vestida, que tamanho tem, como se sente. Chegue perto da sua criança, de braços abertos e ofereça para ela um abraço demorado e bem carinhoso. Talvez sua criança interna esteja precisando ser lembrada de como ela é importante e merece ser feliz. Diga para sua criança interior que ela não está sozinha e que você vai cuidar dela de agora em diante. Demore-se neste abraço e quando sentir que sua criança interior está nutrida emocionalmente despeça-se, mas diga que você sempre estará por perto, pronta para um novo abraço. 

Depois imagine-se daqui 5 anos, como se você pudesse se encontrar com você mesma daqui a 5 anos. Ouça o que sua versão do futuro gostaria de pedir para você fazer no presente, de tal forma que daqui 5 anos você esteja muito bem e feliz.  Talvez ela peça para você se amar e se valorizar, sem esperar que o valor e o amor próprio venha de fora, mas que venha de dentro de si mesma.  E se sentir que não está preparada para se oferecer isso, peça ajuda. Assim, quando você se encontrar com sua versão do futuro, ela terá muito orgulho de você e estará vivendo e colhendo os frutos do amor próprio e da saúde mental que você plantou e cuidou no presente. 

Podemos pedir ajuda para as pessoas próximas como familiares e amigos e também pedir ajuda profissional. A psicologia oferece acolhimento e apoio na reconstrução da auto estima e do valor próprio, além de autoconhecimento, que são essenciais para romper com o ciclo da toxidade nos relacionamentos.

11. Que mensagem você gostaria de deixar para aqueles que estão passando por um relacionamento tóxico ou que conhecem alguém nessa situação?

Gostaria de dizer que as coisas podem melhorar.  É desafiador mas vale a pena sair desta condição. Saiba que você merece o melhor da vida e deve buscar uma vida saudável e feliz em todos os aspectos. Gosto muito da música de Lenine que diz: “… Será que é o tempo que lhe falta pra perceber. Será que temos esse tempo pra perder. E quem quer saber. A vida é tão rara, tão rara”. Então, que possamos aproveitar a vida de forma plena, com todas as infinitas possibilidades de beleza e amor que ela tem para nos oferecer.  

12. Você pode recomendar livros e séries que podem ajudar as pessoas a entender mais sobre relacionamentos saudáveis e tóxicos?

Eu costumo indicar os livros: Codependência nunca mais e Para além da codependência de Melody Beattie. São dois livros com histórias reais que ajudam a vencer essa batalha e recuperar o amor próprio.

A série da Netflix Maid também é uma excelente indicação pois mostra a história de uma jovem mãe que foge de um relacionamento abusivo e enfrenta a dura realidade de sobreviver enquanto cria sua filha. Traz muitas reflexões sobre as dificuldades que se enfrenta, os altos e baixos do processo e o “ciclo do abuso”. Mas também indica que há um caminho saudável a seguir.

Contato:

Letícia Giovelli formou-se em 1995 em psicologia pela PUC Campinas. Desde então atuou no setor público no atendimento psicológico e com educação emocional de pais e professores da rede pública de ensino. Com a pandemia e o aumento da procura no consultório particular, passou a se dedicar exclusivamente ao atendimento como psicóloga clínica. Letícia é também palestrante na área da saúde mental e emocional, e apaixonada pelas terapias integrativas e complementares em saúde.

Fone: (19) 98183 1758 – @psico.leticiagiovelli

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