Cuide do espírito e resgate o sonhar
O cultivo da interioridade nos põe em contato com nossos sonhos, os quais, segundo a Antroposofia, são anseios genuínos da alma para que realizemos nosso propósito nesta existência.
Neste começo de ano, um novo ciclo se abre para todos nós, mas o que fazer com a promessa de um futuro a ser construído dia após dia? Muitos ainda se sentem abalados pelas incertezas do momento e com dificuldade de imaginar o por vir, já que o hoje, por si só, tem sugado boa parte das nossas forças. Então, um caminho possível em meio às névoas do presente pode ser este: cuidar do espírito, cultivar sonhos e, no tempo de cada coisa, realizá-los.
Para nos inspirar a seguir nessa direção, a artista plástica, arte educadora, aconselhadora biográfica, escritora e pesquisadora, Luciana Pinheiro, refresca o nosso olhar com a sabedoria da Antroposofia e com sua visão sensível sobre o que pode ser nossa passagem pela Vida. As possibilidades estão palpitando em nossa alma. E nossos sonhos mais verdadeiros querem nos mostrar justamente isso. Como você compreenderá a seguir:
Como você define a espiritualidade para além de qualquer modismo?
Para mim espiritualidade é uma atitude diante da vida. Envolve um sentimento de pertencimento e de devoção por tudo que envolve a vida na Terra. Uma conexão que a alma acessa quando está em sintonia com as forças cósmicas e com os elementos da natureza. Este sentimento de comunhão promove empatia para tudo e todos. Espiritualidade é amor na prática.
Se a espiritualidade for aprisionada por dogmas, o que se perde?
Uma coisa é conhecer algo desprovido de vivência. O conhecimento pode ser transformado em uma crença e podemos acolher este conhecimento sem necessariamente vivenciarmos o que ele propõe, sem questioná-lo. Dogma é conhecimento desprovido de vivência. O caminho da verdadeira espiritualidade deveria ser livre de dogmas para que todos possam, a partir de sua vivência, encontrar sua verdade.
Segundo a Antroposofia, como podemos cultivar o espírito em nosso dia a dia?
Antroposofia significa a sabedoria do ser humano, quando nos reconhecemos seres divinos e filhos da criação podemos acessar esta sabedoria buscando um diálogo com todos os reinos da natureza. Existe em nós o reino mineral na estrutura óssea, o reino vegetal na nossa estrutura vital fisiológica e o reino animal através de nossos instintos primitivos. Além disso, fazemos parte de uma grande configuração cósmica onde somos submetidos a determinados ciclos como o lunar e as estações do ano. Reconhecer que fazemos parte de toda criação e ver a beleza em cada manifestação da vida é acessar esta sabedoria com devoção e, quando conseguimos fazer isso, estamos vivenciando as forças espirituais que existem em tudo.
Quando integramos em nossas vidas esse aspecto da experiência humana na Terra, que tipo de transformações tendem a ocorrer?
Há uma frase de Pierre Teilhard de Chardin, teólogo e filósofo francês, que diz: “Não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, somos seres espirituais vivendo uma experiência humana.” Se aceitamos isso e passamos a ver as experiências na nossa vida a partir deste pensamento, tudo que vier no nosso destino poderá ser acolhido como oportunidade de aprendizado e evolução para nossa alma, que, de outra forma, sem esta vivência humana, não conseguiríamos acessar. Em outras palavras, aceitar as provas do destino com confiança na ajuda sempre presente do mundo espiritual, sabendo que cada conquista de consciência será revertida para nossa evolução além desta existência, fortalece a alma para enfrentar as batalhas na Terra.
Como não se deixar iludir pelo ego “espiritualizado”, que leva algumas pessoas a se considerarem superiores a outras?
Pessoas que vivem de fato a espiritualidade na sua prática diária têm mais condições de reconhecer suas sombras e, nesse sentido, tendem a ser mais empáticas, amorosas e altruístas. Estas virtudes só podem ser desenvolvidas quando aceitamos com humildade que, mesmo sendo criaturas espirituais, não somos maiores ou melhores do que nenhuma outra forma de vida, somos todos parte de uma grande criação. Por isso, ao invés de vivermos sobre o paradigma da competição, que gera separação, exploração e comparação, podemos nos fortalecer fraternalmente como uma grande família humana. Na minha visão, este seria o propósito maior para a verdadeira espiritualidade.
De que forma essa conexão interior fortalece nossa relação com os nossos sonhos mais verdadeiros?
Hoje em dia, diante de tantos estímulos e influências midiáticas, é difícil realmente identificar o que é o nosso sonho e não aquele que nos fizeram acreditar ser nosso. Ao longo do amadurecimento biográfico, de acordo com o tamanho dos desafios e dos traumas que vivenciamos, e também com a limitação de crenças e hábitos herdados e não transformados, as pessoas se esquecem do sentido da sua própria história e seguem no automático, num processo limitado de vida. Porém, nossa alma sabe o que veio realizar aqui.
Nem sempre é fácil identificarmos os sonhos que brotam da alma. Por que esse reconhecimento às vezes é tão difícil de ser feito?
Isso tem a ver com o amadurecimento da alma. Se você olhar para a sua biografia constatará que seus sonhos de juventude eram puros, verdadeiros. Estes são sonhos mais tenros, de quando a gente começa a desabrochar e acessa de fato a nossa estrela, ou seja, o propósito maior do que viemos fazer aqui. Mas, às vezes, o nível de consciência e de maturidade daquela época entendeu que era preciso primeiro encontrar um caminho mais óbvio. Por exemplo, a pessoa sempre quis trabalhar com arte, mas ser artista aos 20 anos de idade era uma utopia. Então, ela se convenceu de que era melhor prestar um concurso público ou fazer uma faculdade para, lá na frente, realizar esse sonho. Então, ele foi abortado porque não estava maduro o suficiente para ser assumido. A fim de identificarmos realmente o que nossa alma anseia, e a pandemia ajudou muito nisso, às vezes só precisamos perceber o que é suficiente. Alguém pode perceber, por exemplo, que não precisa de uma casa grande, que pode ter uma estrutura menor, mais simples, porque não é feliz naquela casa imensa, ela não é de fato o que a pessoa queria. Ela queria, na verdade, um lugar para se sentir acolhida e segura.
Depois de identificarmos nossos sonhos, o que fazer em seguida?
Depois de identificarmos quais são nossos sonhos verdadeiros, vem a etapa do cascalho. O operário dentro de nós precisa começar a trabalhar com essas imagens e programar, planejar, adquirir recursos, ferramentas intelectuais, auxílio terapêutico, enfim, condições para se organizar no tempo e no espaço.
Temos pressa para tudo no mundo contemporâneo. Os sonhos precisam de outra relação com o tempo?
Carl G. Jung afirmou que nossa vivência de alma passa pela relação espaço-tempo. Passado, presente e futuro; largura, altura e profundidade. Hoje, por vivermos no online, não temos um caminho de relacionamento mais personalizado, mais pessoal, estamos perdendo essa relação de tempo-espaço. O tempo está passando diferente e na relação com os outros não temos um espaço, conversamos através de uma tela, do peito para cima. Não vemos o corpo todo, o volume, a linguagem corporal. E realizar um sonho é poder projetá-lo no tempo e no espaço. Então, a gente está tendo um esforço muito maior hoje para conseguir colocar nessa projeção uma realidade que está mudando todos os dias. Então, quanto tempo eu preciso para realizar o que sonho? Vai depender do andamento da pandemia, neste momento. Então, os sonhos lúcidos estão carentes de serem programados para o futuro próximo, pelo menos.
No fim das contas, os sonhos estão sempre nos rondando, seja de noite, seja de dia, não é?
Na abordagem de Carl G. Jung os sonhos têm uma relevância muito grande no entendimento do que a gente vivencia na vigília. Se eu vivi uma determinada situação na minha vida prática, cotidiana, eu elaboro aquilo no sonho dentro daquilo que o meu inconsciente acolheu como arquétipo, como crença, às vezes até como um trauma do passado. Tudo isso vai sendo processado pelos sonhos à noite de acordo com as vivências do dia. Também temos os sonhos lúcidos, concebidos quando estamos acordados, por exemplo, o sonho de fazer uma viagem.
Você poderia partilhar algumas palavras de Rudolf Steiner para nos encorajar a seguir sonhando?
Germinam os desejos da alma,
Crescem os atos da vontade.
Maturam os frutos da vida,
Eu sinto o meu destino,
Meu destino me encontra.
Eu sinto minha estrela,
Minha estrela me encontra.
Eu sinto meus objetivos,
Meus objetivos me encontram.
Minha alma e o mundo são um só.
A vida se torna mais clara ao redor de mim,
A vida se torna mais árdua para mim,
A vida se torna mais rica em mim.
Busque a paz,
Viva em paz,
Ame a paz.
Se você se interessou pela Antroposofia, leia também esta entrevista com a Dra. Gudrun Burkhard, precursora da Medicina Antroposófica no Brasil.
Luciana Pinheiro
Artista plástica, arte educadora, aconselhadora biográfica, escritora e pesquisadora.
Como terapeuta biográfica e pesquisadora, aprofundou-se na biografia do escritor alemão Goethe e na sua “Teoria das Cores”. Estuda e trabalha com pintura meditativa e como terapeuta em processos de desenvolvimento pessoal há mais de 25 anos. É docente em formações nas áreas da pedagogia, saúde e educação. Após dez anos de pesquisa, publica o primeiro livro em língua portuguesa sobre a vida e a obra da artista sueca Hilma af Klint (1862-1944).
Contatos
(19) 99796-1190
@hilmaascoresdaalma
@luciana_apinheiro
www.facebook.com/luciana.pinheiro