A relação entre pais e filhos

A relação entre pais e filhos

A Dra. Ana Paula Cury, fundadora da Escola de Pais, da escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, explica as grandes aflições de ser mãe e pai na atualidade, o que significa educar, a importância da primeira infância, os malefícios dos jogos eletrônicos e da falta de limites e a imprescindível necessidade dos pais se autoconhecerem para não projetarem sobre as crianças suas questões mal resolvidas.

Dra. Ana Paula Cury

Dra. Ana Paula Cury é formada em medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte. Complementou sua formação em medicina antroposófica, é fundadora da Escola de Pais, da escola Waldorf Rudolf Steiner, na capital paulista, e coordenadora do Projeto SEMEAR em Paraisópolis, SP.

O que é a Escola de Pais?

É uma escola para pais, baseada em dois grandes pilares: o conhecimento sobre o ser humano e o seu vir a ser e a autoeducação (o trabalho sobre si mesmo). Muitos pais se sentem desamparados nesse exercício de maternidade e paternidade. São muitos os desafios que o mundo hoje impõe a eles. Há muitas condições que antes eram dadas naturalmente e que hoje não existem.

As famílias antes eram numerosas, muitas mães ficavam em casa e mesmo que dedicadas aos afazeres domésticos, elas estavam disponíveis para qualquer socorro. Não havia tanto medo, havia uma cultura de brincadeiras e não de tantos brinquedos eletrônicos.

Não dá mais para assentar o exercício da parentalidade numa sabedoria instintiva. Hoje as pessoas precisam se preparar para isso. Então, é um pouco para oferecer esse espaço de troca, de apoio mútuo e de autodescoberta.

Quais são as maiores angústias desses pais?

Muitos estão consumidos por tantas demandas e sentindo-se culpados pela ausência, tentam compensar materialmente ou têm dificuldade em estabelecer limites porque têm medo de perder o amor daquelas crianças e acabam correspondendo a todo e qualquer capricho e desejo. Por outro lado, tem medo que as crianças caiam, se machuquem.

Imagina! Quando éramos pequenos sumíamos no meio do mato, nossos pais nem davam notícia da gente, brincávamos com muita gente, voltávamos para casa para tomar banho e comer. E hoje, muitas vezes, é vedado a uma criança subir numa árvore, algo que parece perigoso.

Coloca-se limites demais onde a criança deveria poder exercitar capacidades que já estão disponíveis e conquistar um senso de realização e gratificação e, por outro lado, se deixa de colocar onde deveria, que seriam limites para preservá-la de influências nocivas ao seu desenvolvimento. É o caso dos jogos eletrônicos. Existe uma pressão gigantesca e mesmo sabendo que isso não é adequado, os pais sucumbem às pressões.Eles precisam se fortalecer, ter a convicção bem fundada, ter a força de vontade suficiente para bancar aquele ‘não’ e parecer chato, porque a criança não terá a capacidade de compreender isso nesse momento.

Quais são as consequências da falta de limites?

A ausência disso gera, por exemplo, intolerância à frustração, gera, mais tarde, jovens e adultos que são muito voluntariosos, caprichosos, por um lado, mas com pouca capacidade de autodeterminação, por outro. Se não há tolerância à frustração, e, ao mesmo tempo, uma força de vontade enfraquecida, é bem provável que diante de desafios maiores, surja o apelo de algo que gratifica temporariamente, mas que não resulta do esforço próprio. Busca-se algo que substitua o que capacidades não desenvolvidas mediante esforço da vontade deixam de produzir. Assim nasce, por exemplo, um terreno fértil para os vícios e adicções. Porque o limite também represa, fortifica, concentra essa força de vontade. Além disso, eu vejo também muitos pais querendo ser amigos dos filhos, enquanto eles deveriam se constituir numa autoridade amada, uma autoridade capaz de suscitar neles amor, devoção, confiança em sua força para conduzi-los. É diferente de obediência. Tem o momento da gente se tornar amigo, mas certamente não é quando a criança é pequena.

Hoje, é verdade, há uma proximidade emocional maior, antigamente, o que era respeito podia ser também um distanciamento emocional. Ganhou-se uma abertura de diálogo, mas perdeu-se um pouco o senso de orientação e alguns pais chegam mesmo a desertar de sua responsabilidade parental terceirizando as crianças. Mas é preciso dar referências, estabelecer as escolhas, assumir responsabilidade pelas decisões. Então, ocorrem muitos equívocos. E há ainda a questão dos jogos eletrônicos em que faltam critérios e limites expondo as crianças a coisas para as quais não possuem discernimento, nem autocontrole.

Quais são os malefícios?

São muitos. Compare a tez de uma criança diante de uma tela com uma criança brincando com outras. Uma está coradinha, a outra pálida, uma tem o olhar vivo, a outra traz o olhar vidrado, uma está realizando algo, a outra está recebendo estímulos luminosos, neurossensoriais que vão causar, muito possivelmente, à noite, distúrbios no sono. Ela fica literalmente pilhada. E uma criança intoxicada com esses excessos de estímulos neurossensoriais pode começar a ficar com gestos estereotipados, ter comportamento antissocial, nervosismo, agitação… Ela pode ficar hipercinética e ter ímpetos que não é capaz de dominar, onde caberia uma carícia ela vai e dá um tapa, uma mordida, e não é porque ela queira, mas é como se estivesse intoxicada e expurgasse o que não pode digerir internamente através de descargas anárquicas motoras. Isso eu vejo bastante.

Como ajudar a criança a se divertir com as brincadeiras e não só com os equipamentos eletrônicos?

Quanto mais a criança conhecer e tiver a oportunidade de contato social, de brincadeiras, de contato com a natureza, de referência do que é saudável, menos vulnerável ela é a esses outros apelos. A mídia se torna um apelo mais atraente quanto mais a criança estiver só e entediada, não preenchida por vivências de brincadeiras e encontros que a alegrem e entusiasmem. E se ela tem mais brincadeiras do que brinquedos é ainda mais interessante. As brincadeiras impelem a criar, a fazer de conta, a fantasia é uma força propulsora do próprio pensamento. Minha mãe parou de trabalhar depois que os filhos nasceram. Ela se ocupava dos afazeres domésticos, às vezes, ela iniciava uma brincadeira e se retirava, mas eu tinha a sensação de uma presença que permeava o ambiente todo. Hoje, às vezes, os pais se ocupam, mas não estão integralmente presentes, a atenção está dividida.

Eu estou aqui de corpo presente, mas a minha atenção está num outro espaço-tempo, num trabalho que eu tenho de entregar ou com alguma discussão que houve… Se a criança te mira nos olhos e não te enxerga, não te vê integralmente alí disponível para ela, para atende-la, é como se você não estivesse realmente ali.

A qualidade da presença importa muito. Quando a criança se sente reconhecida, vista, amada através do gesto, não em palavras, mas num gesto que implica essa dedicação verdadeira, isso traz uma alegria, gratidão, reforça a confiança e isso também dá a ela a possibilidade de se dirigir a outras crianças.

E quando elas não sentem que os pais estão presentes por inteiro, o que isso gera?

Têm muitas coisas que a criança não vai pensar, ela vai sentir, mas isso que ela sente, se pudesse ser colocado em palavras, seria algo como: “Eu não sou visto”. Se isso aparece como recorrente, incita uma necessidade urgente de confirmação afetiva, de reconhecimento. Se a criança não puder obter a atenção da qual ela necessita para se sentir amada e reconhecida, ela vai partir para comportamentos inconvenientes ou vai adoecer.

Muitos casais se separam quando a criança está na primeira infância e eles desenvolvem um sentimento de culpa muito grande por não estarem integralmente presentes…

A qualidade da presença faz toda a diferença. Quantas vezes a gente está em casa, casado, mas não dá a devida atenção? Às vezes esse pai ou mãe pode estar distante, mas carrega a criança na consciência. Isso faz diferença, porque ajuda e recria a conexão, mesmo que não se esteja presencialmente, fisicamente, a criança está presente na minha consciência, ela me importa, eu penso nela. A gente se ilude com aquilo que é físico e material, mas faz muita diferença para a criança se eu penso nela, se eu ajo tendo-a em mente, o cuidado com aquilo que eu vou levar para presenteá-la e não qualquer presente, mas algo que eu sei que ela gosta. Então, se cuidarmos dessas coisas, muitas vezes, essa presença é maior e atua mais forte do que uma outra que é só o corpo e não tem a presença da alma. Há muita coisa que a criança assimila sem ser dita verbalmente.

Nessa primeira infância, os sete primeiros anos de vida, as crianças aprendem por imitação?

Sim. Por exemplo, se quando pequena ela via os pais não cumprimentarem uma babá da mesma forma que cumprimentavam outras pessoas, eles a estão ensinando a discriminar. O mais importante é que nessa época a gente dê exemplos dignos dessa imitação e para isso eu preciso constantemente me auto examinar e perceber que impacto os meus atos têm na criança porque o comportamento dela vai me revelar o que ela está assimilando. É nesses primeiros anos que a gente vai esculpir a nossa humanidade, moralidade.

Por isso você diz que os pais precisam trabalhar em si mesmos?

Na verdade, quando a gente fala de educação a própria palavra etimologicamente significa ‘conduzir para fora de’. Então, educar tem muito menos a ver com impingir e muito mais com chamar à tona. Como pais, quando a gente realmente quer que a criança revele o seu potencial e se realize segundo o seu destino interior, é preciso se auto educar para oferecer-lhe esta possibilidade, essa referência.

Eu fui criança um dia. Há muitas coisas que a criança vai experimentar que vão me remeter a vivências que eu tive no passado. Ora, eu fui tratado de uma determinada maneira, agora eu posso pensar em como isso impactou a minha vida. Se aquilo me oprimiu ou se aquilo me apoiou no meu desenvolvimento. E se eu ganho essa consciência, agora eu posso escolher.

Transformando minha postura perante a criança que se confia a mim, eu curo o meu passado e abro uma perspectiva libertadora para meu filho ser quem ele está destinado a ser e não aquilo que eu projeto sobre ele, muitas vezes perpetuando padrões transgeracionais.

 

Se eu estiver atento, eu posso me lembrar da dor que eu senti quando eu fazia a mesma coisa e era castigado e, assim, eu posso escolher agora ajudá-la primeiro a dissociar o ato do seu ser essencial. O ato deve ser repreendido, mas a criança não pode ser igualada ao ato. Quando o adulto não faz essa distinção, ou seja, não manifesta o pesar pelo ato e, ao mesmo tempo, reafirma sua confiança e amor pelo Ser dando à criança a chance de reparar o mal em bem, ela vai sentir que o mal é ela. “Não importa o que você faça, não há nada que diminua o meu amor por você”.

Nós fomos educados na forma do castigo-recompensa. Mais tarde, fazemos o certo não porque é certo, mas por medo do castigo ou para merecer uma recompensa. É preciso então transformar isso primeiro em nós para educá-la por amor para que ela livremente escolha fazer o bem, por reconhecê-lo, e não por medo ou interesse. Agora, se eu solicito algo da criança que eu não faço, que moral eu tenho para solicitar isso?

Para saber mais:

https://www.youtube.com/watch?v=XM0H8m-52CY

https://www.youtube.com/watch?v=p6H7rPl15YY

Contato: apic@pnl.com.br

Para o topo