Autoconhecimento: Uma trilha para ser desfrutada

Saiba por que o antiquíssimo “conhece-te a ti mesmo” é um caminho atemporal para a autorrealização e o que ela realmente significa.

Conhecer a si mesmo é pré-requisito para uma vida saudável e frutífera. Não restam dúvidas sobre isso. Mas o que exatamente esse anseio comporta? Será que estamos atrelando o autoconhecimento a metas e finalidades autocentradas demais? Qual é, afinal, o sentido profundo e verdadeiro da frase propagada pelos gregos antigos: “Conhece-te a ti mesmo”?

Pode ser interessante parar para refletir sobre os intuitos que nos movem nessa jornada e se é hora de reformularmos a perspectiva para que realmente desfrutemos de cada passo dado na trilha interior, sendo capazes de celebrar as descobertas e as renovações à medida que elas se manifestam e se consolidam em nossas vidas. Livres de qualquer expectativa de desempenho, é bom ressaltar.

A fim de clarearmos o sentido do autoconhecer-se e também desmistificá-lo, conversamos com a Dra. Cristiane Marino, médica, psicoterapeuta, consteladora sistêmica e buscadora espiritual de longa data. Adepta da abertura mental e da humildade de coração, ela enxerga na busca pela nossa essência a possibilidade de expandirmos cada vez mais a vocação para o amor. Vale a pena descobrir como aflorar e sustentar esse estado de alma.

A máxima “conhece-te a ti mesmo” estava inscrita na entrada do Templo de Apolo, em Delfos, na Grécia Antiga. Que pistas isso nos dá para decodificar esse ensinamento?

As pessoas costumam usar só a primeira parte desta frase, “conhece-te a ti mesmo”, e se esquecem dela inteira: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”. Essa segunda parte muda totalmente o sentido da primeira. Falar apenas “conhece-te a ti mesmo” fica pobre, superficial. Algo como: Vou conhecer a mim mesmo para eu ser mais feliz, para eu ter mais alegrias, para eu viver melhor. Ok. Mas ainda não tem um sentido maior. Porque a segunda parte é que dá o grande sentido da primeira.

Pois você vai conhecer a si mesmo não só para viver melhor, mas para se conectar com a sua fonte, com a sua origem, com o sentido mais profundo da vida e com toda a natureza e o universo. Dessa origem, desse lugar, dessa conexão mais profunda com tudo o que existe emana a força, a coragem, o sentido, o propósito da existência. Não é um mero conhecer a si mesmo hedonista e sim um conhecer a si mesmo para se conectar com algo maior e servir, encontrar o seu verdadeiro lugar dentro do tecido da existência e poder servir da melhor forma possível.

Por que ele continua válido ainda hoje?

Porque esta é uma busca da existência humana. Independe da época e da cultura. Todas as culturas têm essa máxima escrita de alguma outra forma, mas com esse sentido. A busca pela conexão com algo maior é humana e vem, primeiro, conectando-nos com nós mesmos, porque somos um microcosmos dentro de um macrocosmos. Se a gente não se conecta com a gente mesmo, com o nosso corpo, sentimentos, sensações e intuições, como a gente vai aprender a se relacionar com o fora, com o mundo, com as pessoas, com tudo o que vem com a vida? Por isso essa máxima é atemporal.

A professora Lucia Helena Galvão, da Nova Acrópole, diz que para você saber se algo é realmente valor, você aplica a isso o teste do tempo. Se isso só vale por um determinado período de tempo, isso não é real valor. Agora se isso vale independentemente da época, então isso é valor. Algo que confere também valor à nossa vida. A outra coisa é que nós vivemos numa época em que essa máxima é mais necessária do que nunca, porque a gente vive num mundo que nos convida o tempo todo à alienação, a sermos apenas uma engrenagem de produção e consumo para manter o sistema funcionando, um sistema doente. E a gente vê cada vez mais esse adoecimento surgindo na vida das pessoas, seja por doenças mentais, físicas, sociais ou ecológicas.

O que é preciso para nos conhecermos?

A primeira coisa é amor, a gente poder se colocar nesse caminho de buscar se conhecer por amor a si mesmo e por tudo o que vier nessa jornada. Se eu vou tentar me conhecer só com uma finalidade específica, porque tenho uma meta, já não vai dar certo, porque não necessariamente aquilo que eu vou descobrir sobre mim mesma vai me colocar em sintonia com essa meta. Pode ser que essa meta, esse objetivo de vida, fosse fruto de uma alienação ou o desejo de outra pessoa que eu estava comprando para mim. E, no momento em que eu começo a me conhecer, pode ser que eu me distancie desse objetivo, dessa meta, dessa finalidade que foi imposta ao caminho do autoconhecimento. Aí a pessoa vai sentir frustração e vai desistir, se ela for muito apegada a essa finalidade.

Então, a primeira coisa é entrar nesse caminho e olhar para si mesma com amor e sem metas nem cobranças. Simplesmente estando aberta para ver o que existe dentro desse universo interno. E também poder acolher com amor coisas que a gente vai percebendo em nós que não achamos legais ou bonitas. No entanto, elas estão aí e podemos olhar para elas tentando ver se podem ser úteis, se podem se tornar algo bom, se usadas de outra forma. Ou se eu tenho uma determinada característica que é muito nociva para mim e para os outros, eu poder reconhecer que isso está em mim, que isso faz parte, mas não me colocar a serviço dela.

Sabendo que ela existe, vou ficar mais atenta. De modo que, quando ela aparecer, eu vou perceber e vou evitar muitos estragos tanto na minha vida como na vida de outras pessoas. Esses seriam os primeiros passos do autoconhecimento.

O que é mais difícil ou trabalhoso ao longo desse processo?

O mais difícil é abrir mão das ilusões que temos sobre nós mesmos. A gente se acha muito legal, uma pessoa do bem, a última bolacha do pacote. Mas, vai percebendo que não é tudo isso, que temos aspectos sombrios que precisam ser reconhecidos e cuidados. E que está tudo bem, que não precisamos ser perfeitos, mas podemos ser completos e, às vezes, usar coisas que eu não valorizava em mim ou que eu considerava negativas de uma forma que aquilo seja útil, bom. A outra coisa é quando a pessoa tem uma autoestima muito baixa.

Na verdade, ela tem uma régua que está lá na estratosfera, que é irreal. Logo, ela nunca vai chegar àquele lugar. Então, outro trabalho difícil no caminho do autoconhecimento seria quando a pessoa está nesse polo, da autoestima baixa, e começar a reconhecer que as exigências que ela tem para com ela mesma são absurdas e ter que abrir mão daquele ideal acalentado durante toda uma vida para poder abraçar a pessoa real e descobrir nela dons, dádivas, que ela nem imaginava que poderia ter, porque só ficava olhando para o topo daquela régua, daquele ideal que ela nunca iria atingir e que a impedia de perceber coisas legais na pessoa real. Além disso, ela aplica essa régua aos demais. Logo, os relacionamentos são muito difíceis.

Saiba como os florais nos ajudam a acolher todos os sentimentos que nos visitam.

É natural avançar e recuar nessa busca conforme as fases e as contingências da vida?

Sim, porque a evolução psicológica não é uma linha reta ascendente que vai chegar num platô de felicidade e iluminação. Isso não existe. O desenvolvimento psicológico acontece numa forma espiral, ou seja, vamos passando pelos mesmos pontos muitas vezes ao longo da vida, mas em cada vez estamos num plano diferente dessa espiral. Logo, temos um ponto de vista completamente diferente em cada volta que essa espiral dá.

Adquirimos um novo aprendizado, elaboramos questões sobre aquele ponto, até que vai chegar o dia em que aquele ponto, quando dermos a volta, não vai chamar muito nossa atenção. Vamos olhar, ver que ele está lá, mas estará ok, vamos continuar e talvez outro ponto nos chame a atenção e aí vamos trabalhar em outra questão. Isso porque o fazer alma acontece desde o momento em que a pessoa nasce até o momento em que ela morre. Não existe um momento em que ficamos prontos, iluminados. Essa espiral crescente vai se abrindo e abrangendo cada vez mais coisas e aspectos também externos que vão nos integrando cada vez mais com o mundo, com a natureza e com o cosmos.

Algumas pessoas alegam que o autoconhecimento exacerbado pode nos tornar autocentrados demais em nossas próprias questões. Esse risco existe?

Isso existe quando a gente toma como máxima só a primeira parte da frase inscrita no templo de Apolo em Delfos. Nesse sentido, o “conhece-te a ti mesmo” fica uma coisa “eu com meu umbigo”, uma coisa muito hedonista. Mas quando a gente considera a frase inteira: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”, significa que eu vou me integrar com o macrocosmos, com a fonte da vida, tenha ela o rosto que tiver, de acordo com a fé de cada um. Aí tem uma questão muito importante que diz respeito à humildade.  Não existe felicidade sem humildade.

O caminho do autoconhecimento é um caminho em que a gente vai se tornando cada vez mais humilde e mais conectado com o mundo externo, querendo servir mais. Se isso não está acontecendo na jornada do autoconhecimento, se a pessoa está mais centrada no próprio umbigo, buscando prazeres imediatos e coisas que resolvam os problemas de forma instantânea, ao invés de seguir um caminho de autoconhecimento, ela está seguindo um caminho de inflação do ego. É preciso ter muito cuidado com isso, porque o caminho do autoconhecimento expande cada vez mais o horizonte, ele faz com que o indivíduo olhe para o seu entorno cada vez com uma perspectiva nova de acordo com a volta que ele está dando em sua espiral. Se ele olha só para um funil, isso não é um caminho de autoconhecimento.

Mergulhar em si próprio e aceitar a condição humana imperfeita de todos nós nos torna mais aptos a nos relacionarmos de forma sadia?

Se estamos nesse caminho de autoconhecimento, de acolhimento das nossas falhas, daquilo que não consideramos legal, podendo usar nossos recursos de uma forma mais criativa e benéfica para a nossa vida e para o nosso entorno, é claro que a nossa relação com os outros e com o mundo vai mudar. Além disso, como eu disse, há a questão da humildade, da alegria e do servir.

Quanto mais eu sigo por esse caminho, mais humilde eu me torno e começo a perceber que a alegria real vem do servir a algo maior. Porque a pessoa que vive apenas para satisfazer seus prazeres imediatos experimenta momentos de vazio, de falta de sentido, de solidão muito profundos, por mais que ela se relacione com outras pessoas. Porque é uma questão de sentido da existência. Ao passo que a pessoa que está no caminho do autoconhecimento e do servir a algo maior, com o intuito de deixar algo bom em sua jornada, traz mais alegria para a vida dela.

É lógico que uma pessoa mais acolhedora com as próprias falhas vai acolher o outro de forma mais amorosa. A pessoa que é humilde, que está a serviço, que não é tão autorreferenciada, não vai achar que tudo o que outro fez foi para ofendê-la, foi de propósito, não vai levar tudo para o lado pessoal. Pelo contrário. Claro que, às vezes, vamos entender que certas questões são conflitos que estão tocando em aspectos mais pessoais. Mas, quando isso acontecer, teremos condições de sustentar espaço, respirar, refletir e ver se aquilo merece uma resposta ou não.

Mesmo que nos dediquemos a vida toda ao autoconhecimento, ainda restarão partes nossas que não chegaremos a conhecer?

Achar que vamos saber tudo sobre nós mesmos é um grande erro, pois isso é impossível. A consciência é uma ilha; o inconsciente, o mar. Não tem como a gente, estando numa ilha, querer abarcar todo o mar. A gente pode conhecer grande parte do mar, mas ninguém vai conhecer o mar todo de todo o planeta em toda a sua profundidade, incluindo os lugares mais abissais, distantes e inacessíveis.

O que acontece é que a gente aprende a expandir um pouco os limites da nossa consciência para poder abarcar e acolher cada vez mais novas perspectivas, dons e aspectos nossos que estavam no inconsciente. Alguém achar que um dia vai conhecer tudo sobre si mesmo e assim controlar os outros bem como as próprias reações se coloca no caminho de uma meta, de uma cobrança de desempenho, que na realidade não existe. Porque, como eu disse, o fazer alma acontece desde o nascimento até a morte.

Há pessoas que se lançam em experiências diversas, algumas bastante catárticas, buscando acelerar a “colheita” de insights. Porém, só vamos integrar em nosso ser aquilo que temos condições de elaborar e assimilar? Você pode explicar melhor como funciona esse processo?  

Uma vivência catártica, desencadeadora de choro convulsivo, ou exaustão corporal experimentada através de uma vivência, seja ela qual for, catarse emocional ou física, tem a função, do ponto de vista orgânico, neurológico e emocional, apenas de reduzir a pressão dentro do sistema nervoso. Então, a catarse por si só não leva ao autoconhecimento. Ela apenas mostra que você estava com uma pressão excessiva dentro do seu sistema e que essa pressão se manifestou na forma daquela catarse de acordo com o estímulo recebido.

Se eu faço uma vivência, tenho uma catarse e depois paro, reflito sobre ela, tento perceber as sensações corporais e emocionais que eu tive, imagens que me despertaram, e eu registro isso de alguma forma, dou contorno a isso de alguma forma, seja com imagens visuais, plásticas, seja com escrita, dando um tempo para isso tomar forma em mim, eu deposito essas sementes, que são as percepções, nesse solo que está mais receptivo porque a tensão interna arrefeceu. Então, eu deixo isso germinar. Pode ser que demore muito tempo. Pode ser que não. A partir disso eu vou ter elaborações, insights, no seu devido tempo, e compreender o que eu preciso trabalhar em mim. Ou seja, a catarse só tem valor se acompanhada de uma elaboração posterior que permita que isso vire símbolo, material, para que eu possa trabalhar no sentido do autoconhecimento.

Ou, seja, não tem como acelerá-lo?

Exato. Cada pessoa vai ter insights dentro do seu ritmo, do seu tempo, das suas condições, ferramentas e habilidades psíquicas de elaboração. Ficar provocando muitas catarses seguidamente sem ter a elaboração adequada entre elas, às vezes, leva a doenças mentais graves, como psicoses e depressões severas, porque depois da primeira catarse o sistema já reduziu a tensão, então não há mais nenhuma função fisiológica em termos de auxílio. Se a pessoa ficar se expondo continuamente a estímulos que gerem reações intensas no corpo e no emocional, sem ter o tempo adequado para a elaboração, vai acarretar uma sobrecarga no sistema nervoso e isso pode ser muito prejudicial.

Entenda por que as mandalas são excelentes ferramentas de autoconhecimento.

O que você descobriu de mais valioso até aqui na sua jornada de conhecimento de si mesma?

A primeira coisa que eu descobri foi em relação ao amor. Eu tinha uma visão equivocada do que é o amor. Amor em todos os sentidos. Amor por tudo. Pelas pessoas, pela vida, pela natureza, pelos nossos entes queridos. Eu tinha uma concepção de amor e fui aprendendo que ela é muito maior e pode abarcar muito mais coisas do que eu imaginava ser capaz. Descobri que eu posso amar, inclusive, coisas, situações e pessoas que me causaram sofrimento e que hoje não causam mais.

Descobri também que eu posso amar o meu passado. Tem sido um divisor de águas, porque não tem fim. Eu não era uma pessoa amorosa comigo. Eu era um trator comigo mesma. Se eu tinha que fazer algo para alguém ou entregar alguma coisa no trabalho, eu passava por cima de mim, fazia aquilo a qualquer custo. Fui aprendendo que eu tinha que descer desse trator, porque o mesmo trator que a gente usa para a gente, a gente usa para os outros. Então, percebi que eu tinha que começar a andar a pé e fazer aquilo que é possível me deslocando de uma outra forma na vida.

Como assim?

Você começa a ver as coisas de uma outra maneira. É como uma pessoa que só anda pela cidade de carro ou de ônibus e um dia começa a andar a pé. Ela começa a ver coisas às quais não prestava atenção antes andando em veículos. Sinto essa diferença na minha vida. E também a questão da humildade. Ter humildade para dar um passo atrás, abrir mão de certas ilusões para poder ter abertura e contato com o novo, com outras formas de existir. Isso tem sido muito curativo em vários aspectos da minha vida. Aprender a amar de outra forma e ter a humildade e a aceitação de quem não tem uma meta e não tem um fim. Não é um cheguei lá.

É um desfrutar desse caminho, de cada descoberta, de cada aprendizado, de cada insight. Precisamos aprender a celebrar as mudanças que a gente percebe, ter tempo e pausas para poder fazer essas celebrações, para prestar atenção ao que verdadeiramente importa, perceber o quanto eu desfrutei desse caminho e não quantos quilômetros eu corri para chegar não sei onde sem ver nada do que estava no meu entorno e sem desfrutar de nada. Esse é o aprendizado principal.

Estar cada vez mais presente na própria vida é o que motiva as pessoas a praticarem o mindfulness. Conheça um pouco mais dessa técnica meditativa.

Dra. Cristiane Marino

Cristiane Marino

Médica, Psicoterapeuta, Terapeuta Corporal, Arte-Terapeuta, Consteladora Sistêmica e fundadora do Círculo do Saber, espaço dedicado a cursos, supervisão, formação e constelações com foco no cuidado amoroso com a existência.

Formada pela USP, com Mestrado e Doutorado pela UNIFESP, Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Psicossomática, Especialização em Medicina Tradicional Chinesa, Tai Chi e Qi Gong, Fitoterapia e Yogaterapia.​

Mestra de Reiki.

Iniciada em Tradições de Cura Ancestrais (Xamânicas) as quais estuda há 40 anos.

Contatos

https://circulodosaber.weebly.com/

circulodosaber@uol.com.br

Instagram: @dra.crismarino

tags
Para o topo