Uma boa conversa sobre a adolescência

A fase em que uma série de transformações explodem ao mesmo tempo distribui desafios para todos: jovens, pais, professores, médicos e terapeutas. Saiba como a Antroposofia lança luz e compreensão sobre o desabrochar da criança em adolescente.

“Nunca conheci um adolescente igual ao outro”, exclama Darlan Schottz Ferreira. Como médico escolar, voltado para a formação de educadores alinhados à Pedagogia Waldorf, ele apoia esses profissionais no entendimento da criança e do adolescente; como clínico geral com orientação antroposófica, escuta em profundidade estes que estão no raiar da vida. Além de ser pai de uma adolescente e de um pré-adolescente.

Mais do que sinalizar problemas e apontar soluções, aqui ele delineia as nuances dessa etapa do desenvolvimento humano sob a luz da Antroposofia e da Pedagogia Waldorf. Assim nos ajuda a pensar como podemos estar verdadeiramente ao lado dos jovens nesta fase de grande efervescência, alvoroçada por uma enxurrada de transformações, oferecendo a eles compreensão e suporte para que desabrochem em toda a sua potência. Confira esta interessante conversa a seguir.

Como você enxerga a adolescência inserida no mundo atual?

A forma como as coisas se configuram no mundo de hoje cria uma problemática não só para os adolescentes. É um tipo de configuração de um mundo novo que traz uma série de questões para qualquer faixa etária. Então, sob esse ponto de vista, é problemática, mas, de outro ponto de vista, não. O que quero dizer com isso é que existem coisas hoje que estão melhores para todas as faixas etárias e existem coisas que são mais complicadas para todos. Uma coisa que aparece muito é a diversidade. Acho que faz parte da nossa época as individualidades se manifestarem de uma forma mais solta. Outra questão é a transparência ou a exibição das coisas que acontecem, tornar públicas essas coisas, tudo virar números e estatísticas.

Para mim, falar todos os adolescentes, alguns adolescentes, boa parte dos adolescentes ou um adolescente não muda nada. Pode mudar sob a ótica social, administrativa, do que vai ser feito em termos de diretrizes. Mas, em termos de entender o problema e lidar com ele, não muda. Você tem num adolescente todos os problemas que poderiam estar nos outros e como é que você vai lidar com isso? Estou ocupado em buscar uma compreensão que possa se tornar útil para ajudá-lo.

O que tem chamado mais sua atenção em relação ao comportamento dos adolescentes?

Nunca conheci um adolescente igual ao outro. Quando você conversa com eles percebe diferenças nada sutis, de uma coisa ser o contrário da outra. Há adolescentes que vão fugir do mundo e outros que vão mergulhar nele. Mas, sim, acho que seria uma enorme insensibilidade não reconhecer que há uma série de problemas relativos à adolescência hoje.

A minha questão é que eu acho que já havia uma demanda reprimida de todos os problemas que os adolescentes estão manifestando hoje. Só que antes eles estavam meio tamponados, mas já existiam. O que é mais comum, digo como médico, é chegar ao consultório o que não acontece, ou seja, aquilo que deveria acontecer na adolescência, mas não acontece. Que seria uma coisa de ir para o mundo. O que chamamos na Antroposofia de maturidade terrena.

Pode explicar como a Antroposofia compreende o desenvolvimento humano?

Existe uma visão da Antroposofia, que é aplicada na Pedagogia Waldorf e no aconselhamento biográfico, que se baseia em três paradigmas. O primeiro setênio, da criança antes de sete anos até a troca dos dentes; o segundo setênio, até mais ou menos a puberdade, como sendo um marco biológico, corporal, funcional, que indica uma maturidade para a reprodução sexual; e o início da adolescência, que coincide com o ensino médio.

Cada setênio tem um enfoque pedagógico e paradigmas próprios. Inclusive existe toda uma proposta curricular baseada na visão do que acontece nessa faixa etária chamada adolescência. A evolução no ser humano se dá por etapas.

Se você considerar uma macieira, por exemplo, tem um momento em que ela não dá maçã ainda. E a maçã é onde está a semente dela, seu órgão de reprodução. Poderíamos dizer: uma macieira nunca vai ter filhotes se não tiver maçã. E ela não tem maçã quando é novinha. Na natureza humana acontece isso também. A gente poderia dizer que, na adolescência, nasce uma maçã dentro do ser humano. Ele cresceu, alcançou uma certa maturidade e agora pode dar frutos, se reproduzir. Então nasce algo novo nele que não havia antes.

Que grande mudança, não?

Isso é uma impermanência muito grande no sentido de que o jovem estava acostumado a ser de um jeito e ele não permanece daquele jeito porque acontece uma explosão dentro dele. E ele agora é outro e precisa se identificar com isso. Não significa que sou só eu, médico, que estou olhando o adolescente e vou tratá-lo, cuidar dele ou lidar com ele de uma forma diferente de quando ele era uma criança ou pré-púbere. O próprio adolescente vai ter que se ver agora como sendo diferente do que era e para ele isso é bem difícil porque ele não se vê de fora, mas de dentro. E ele não é um adulto para perceber que está dando esse passo. Ele vê isso ainda lá do palco infantil.

Portanto, é um enorme estranhamento você sangrar pela primeira vez, explodir de pelo, explodir de cheiro, de tesão, uma força que te leva na direção do outro. Aí entra uma questão que vai para o lado da individualidade: Qual é o temperamento dessa criança? Qual é o apoio social que ela tem? Sua educação formal, estrutura de pensamento? Sua situação religiosa? Qual é a base que vai fazer com que essa pessoa se torne um ser sexualmente reprodutor, já que o sexo explodiu dentro dele. Ou deveria explodir. O mundo de alguma forma conta com isso.

Os problemas relativos a essa fase da vida costumam aparecer por meio de quais sintomas?

Sinto que os maiores problemas que a gente tem hoje, enquanto busca de ajuda médica, não queria dizer que são muitos casos, não queria transformar isso em estatística, quero dizer assim: há casos que eu vejo na minha prática como médico escolar. São eles: isolamento, falta de identificação com o corpo, mutilação ou autoagressão do corpo, suicídio ou comportamentos que vão na direção da preocupação de suicídio.

No momento de se identificar com o corpo que se tem, é enorme a quantidade de jovens que não se identificam com ele. Associado a isso existe uma quantidade razoável de situações onde há um isolamento, falta de vontade de participação social, uma tendência a se ter experiências táteis dolorosas para que o corpo seja percebido, uma adicção a telas, uma dificuldade muito grande de interagir corporalmente através do tato, do cheiro, da interação física.

Mas também conheço adolescentes que são plenamente saudáveis e tenho a impressão de que eles são mais saudáveis do que há um tempo atrás, com uma cabeça muito melhor. São adolescentes que como nunca podem conversar com os pais a respeito de sexualidade, como nunca tiveram uma educação muito bem estruturada.

Tenho uma certa dificuldade de achar que o mundo está pior. Vejo que existem coisas que estão piores, mas vejo outras que estão melhores. Acho que tem tudo muito mais e muito mais aparente. Claro que também existe essa coisa do adolescente que vai demais em direção ao mundo e se torna aquele que comete o bullying, que tem distúrbios de poder.

Como a Antroposofia enxerga as questões cruciais pelas quais os adolescentes passam?

Bom, tem três coisas básicas que nascem nesse momento. Um é o amadurecimento de uma sexualidade em termos de capacidade reprodutiva – mas não em termos emocionais -, que é vaidade, vontade de transar, uma demanda por uma necessidade física. Todas essas coisas surgem como um sim ou como um não, porque isso surge como questão. Não é que todos têm vontade de transar e, muitas vezes, a questão é o contrário, uma assexualidade, achar que é sujo, tem nojo, não quer, tem medo.

Então nem sempre é uma potência que vai num sentido positivo. Quando isso acontece, vem muita angústia à tona porque você tem que lidar com uma coisa que não queria. Tem crianças que ainda não queriam que aquilo nascesse. Você é atropelado por você. Nasce um outro você dentro de você. De repente, esse outro você é muito incômodo e você nem gosta dele. Não quer dar fala para ele. E, às vezes, ele nasce te empurrando para outros lugares onde você não deseja estar.

Dessa forma, ele pode nascer de uma forma violenta, de uma forma que queira se impor sexualmente através da força, pode nascer com uma potência muito grande em termos de atividade sexual, por exemplo, de masturbação intensa, ou comparando a frequência com que você se masturba e os meninos e as meninas que você conhece. Como os pais veem isso em casa, se é feito escondido. A descoberta de como o corpo se manifesta é um mundo novo que vai depender muito da maturidade psíquica da pessoa.

E a segunda coisa que nasce nesse momento?

É uma vontade de mundo que passa por um processo de domínio de espaço, domínio territorial, e isso tem a ver com a força no músculo. Esse vai poder mandar no pedaço e o mais fraco vai ter que obedecer. Tem toda uma história de como você vai participar de grupos, de gangues, entra a questão do herói, do mito, de quem eu vou seguir.

Tem toda a história da briga, da violência, do domínio, da disciplina. Agora você tem que se administrar na rua por sua própria conta. É a imagem do centauro.  Você tem um lado animal que acordou e também tem uma cabeça que vai ou não te dar juízo. Esse cavalo pode ser forte demais para a cabeça, o que é um problema; mas também pode ser fraco demais para ela, o que é outro problema. E essa cabeça pode ser toda preconceituosa, travada, querendo adestrar o cavalo ou pode ser uma cabeça extremamente liberal, que está a fim de dar vazão ao cavalo. Ao sair da adolescência o centauro deveria virar gente.  Mas pode não virar.

A terceira?

A terceira coisa é o fato de o adolescente ter mais fome, mais vontade de comer, ou ficar inapetente, até com anorexia, essa coisa de vim pro mundo mas não quero permanecer nele.

É como se você entrasse num avião e ficasse ali brincando, isso seria a primeira infância; no meio do segundo setênio alguém diz para ela que o avião vai cair, a gente chama essa fase de rubicão, você tem um desespero, diz: “ferrou”, vai acontecer alguma coisa e esse avião vai cair ou você já percebeu que ele começou a cair, é a primeira grande crise; na hora da maturidade sexual é a momento em que o  avião bateu no chão, caiu, você não morre, mas estará num outro mundo em que vai se governar, você tem a percepção clara de que tem que se virar.

E aí é um pouco como você sobrevive a esse acidente. Tem gente que vai falar não dá mais pra mim, acabou. Outros falam: vou reagir, vou em frente. Buscar forças no mundo significa energia, botar “troço” aqui dentro para que a máquina rode. Isso tem a ver com comer.

Como assim?

Existem adolescentes que vão comer muito, que é claramente uma postura de querer que a vida vá em frente, ao passo que outros vão ficar inapetentes e até anoréxicos e vão começar a falar em suicídio, em “sair fora”, em não ficar. Além disso, essa coisa de abrir a boca, colocar alguma coisa lá dentro para ver se eu tenho uma vivência interna, tem tudo a ver com as drogas. Porque a minha motivação de continuar muda muito quando eu boto uma coisa dentro de mim que me dá mais ou menos sensorialidade.  É a fase em que começam a fumar, ingerir álcool, experimentar outras drogas. Quando o adolescente não tem a satisfação básica na vida, ele vai compensar dessa maneira.

O dramático dessa história é: por que não usar? Quando a pergunta anterior deveria ser: mas por que você precisa usar? A falta de potência é o que leva ao consumo. Mas ela está tão posta que no fundo não se questiona isso.

O que seria um bom equilíbrio entre essas três dimensões?

A gente espera que o adolescente tenha uma “pegada” legal em relação à comida, ou seja, que ele coma mais porque não é mais uma criança, é um jeito de afirmar estou aqui e quero continuar. Alguma “pegada” sexual seria muito legal que tivesse, um interesse por interação sexual, uma libido acordada, porque isso mostra essa vontade de reproduzir, de encher esse mundo de gente, porque estou voltado para esse mundo. E tem a força do músculo, eu quero trabalhar, garantir meu emprego, buscar o meu lugar e vou lutar por isso, serei capaz de vencer. Se a gente conseguir educar o jovem para que ele chegue com disposição, com entusiasmo, com força para essa luta ou para essa festa que é o mundo, acho que isso é o melhor para cada ser humano.

E como proporcionar isso a eles?

Essa é a questão fundamental da Pedagogia Waldorf. Primeiro é não adiantar as coisas que são da adolescência. Tem toda uma cultura da infância que é cultivar a criança na criança e não cultivar um adulto na criança. Isso é muito forte nos primeiros sete anos. Queremos com isso que a criança entre muito fortemente no corpo ainda antes dela reconhecer esse corpo. Depois, da troca dos dentes até a puberdade, há um processo de encantamento com o mundo que ainda não é a consciência. A ideia é vivenciar, se encantar para que depois se tenha uma consciência do que o mundo é.

A estratégia vem antes, pois a Pedagogia Waldorf tem um aspecto de medicina preventiva tanto no sentido psiquiátrico quanto no sentido corporal. O que você pode fazer para que o adolescente “caia bem do avião” é prepará-lo antes da queda. Então, todo o processo da educação tem a ver primeiro com se identificar com o corpo, estar muito fortemente dentro dele, o que significa não estar pensando ainda. A Pedagogia Waldorf tem um interesse enorme em tudo isso que as pessoas às vezes pensam que ela não prioriza, que é a história da formação intelectual, da capacidade de discernimento, de estar bem informado e habilitado para lidar com tecnologia e tudo mais.

E quando começar essa formação?

Primeiro existe uma estratégia através de vivências, existe toda uma pedagogia que acontece no jardim na educação infantil para que haja uma formação corporal bem definida. Primeiro vem a formação de cérebro, depois investimento em mente. Focamos na questão neurológica no início e só depois na mental. Primeiro é a constituição do sujeito, do controle do corpo, da motricidade, da excitabilidade, da capacidade de reação, da potência corporal toda, do desenvolvimento neurológico que vai ser base depois para o desenvolvimento cognitivo. Depois de dominado o corpo, vem o desenvolvimento afetivo da criança, através de uma visão de beleza, de encantamento pelo mundo.

Então, a educação fundamental está mais interessada em encantar a criança com o que está sendo contado em sala de aula do que oferecer a ela critica e argumento para ela achar que alguma coisa presta ou não. Ela vai aprender de forma emocional, de coração, de “cor”. Só depois que ela já vivenciou e já gosta, faz sentido que ela entenda o que está por trás das coisas. Então, o professor do ensino médio tem uma função fundamental na saúde do adolescente, porque ele não é só maturidade sexual como também maturidade terrena, ele quer conhecer a Terra, ir para fora da escola, vivenciar esse planeta e as matérias deveriam traduzir isso. Deveriam fazer com que o adolescente se apaixone pelo conhecimento das coisas e ver qual é o sentido de cada uma daquelas matérias. Isso é uma tragédia na educação.

Do que eles se queixam exatamente?

O que eu mais escuto dos adolescentes é que a educação é ruim, que não o interessa, que ele não tem interesse por aquilo que está sendo dado na escola. Se o professor não mostrar um mundo que tem sentido, a libido fica no corpo e isso vira o contrário, o que o Rudolf Steiner chama de distúrbio de poder, que tem tudo a ver com essa coisa de bullying, de ter com o outro uma postura que não é respeitosa, uma postura de se impor pela força, de se achar mais do que o outro. Essa educação voltada para Cambridge, quando não é todo mundo que nasceu para isso.

E ainda tem a realidade virtual…

Esse mundo que é muito mais virtual que real, isso não dá vivência de corpo, não dá vivência de mundo real, as pessoas estão se suicidando nas telas, não estão vivendo, estão vivendo só para a informação, não tem corpo nessa história. O excesso de tela já é meio caminho para o suicídio. É não estar presente no planeta. Não encarnar. Não vivenciar isso que é o mundo lá de fora. Estou falando de plantar, cuidar de horta, criar galinha, ter cachorro, andar a cavalo, subir em árvore, ir para a praia, beijar na boca. Nada disso você faz na tela.

Claro que a vida sem a tela hoje é inviável, porém a vida com a tela é inviável, porque a gente não vive quando está na tela. Então, precisamos de uma educação que alimente as duas coisas e, quanto mais nova for a criança, menos tela e, quanto mais adulto, tela, sim, mas sem se esquecer de músculo, de cheiro, de se aporrinhar com coisa que dá trabalho

Se a escola não proporcionar encantamento, como o jovem vai conseguir isso?

Daí entram as terapias. As escolas trabalham com o coletivo, geralmente focadas no currículo, não tem a visão individual nem a clínica. Mas tem uma coisa também que é a cabeça do centauro. Muita gente se ajeita na adolescência a partir de si mesmo, porque também nasce uma coisa chamada juízo. A capacidade de pensar de forma crítica. E tem muito adolescente que segura a sua onda. Esse cavalo de bobo não tem nada. Ele começa a ver que, do jeito que ele é, pode se dar bem ou mal. Então, a vida em si dá muita coisa independente de terapeuta e de escola. A pessoa vai vendo as coisas. É preciso dizer que as maiores biografias do mundo não estudaram em escola Waldorf e nem tiveram a vida facilitada, muito pelo contrário.

Não quero ser romântico, porque, muitas vezes, é trágico, mas também é incrível que dentro de alguém que enfrenta todas as dificuldades do mundo exista um terapeuta daquele alguém, que é ele mesmo. Também quero lembrar que esta é a época melhor da vida. Quando ela vem de um jeito que pode florescer, é a primavera, é  a hora em que você dá frutos, dá flor. Há adolescentes que emocionam pela beleza de serem como são, essa esperança de que as coisas vão dar certo, esse vigor, esse pique de estar indo à frente é lindo. É uma fase muito bonita, tem os seus problemas, mas não acho que seja uma maldição imposta biograficamente na vida das pessoas.

Quer ler mais sobre o assunto? Então, saiba o que esperar do setênio da adolescência.

Se quiser ir mais longe nesse tema…

Assista no nosso canal Youtube o bate-papo “Adolescência à flor da pele os jovens nos consultórios” com Zeca Catão e Andréa Helmeister

Darlan Schottz Ferreira

Médico de orientação Antroposófica com atuação nas áreas de Clínica Geral e Medicina Escolar e formação em Pedagogia Waldorf.

Contato

@darlanschottz

oladarlan@gmail.com

(21) 99737-4141

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