A boa escuta pede presença

Para o palhaço e educador Cláudio Thebas, a conexão com nós mesmos é fundamental para nos escutarmos e, consequentemente, os outros.

Você tem se escutado ultimamente? Se a resposta for positiva, provavelmente também está de ouvidos abertos para o que as pessoas realmente expressam. “Escutar é caminhar junto”, nos ensina o livro O Palhaço e o Psicanalista – Como Escutar os Outros Pode Transformar Vidas (Editora Planeta), escrito pelo palhaço, educador, palestrante e consultor corporativo Cláudio Thebas e pelo psicanalista Christian Dunker.

Temos tanto a aprender sobre esse exercício crucial para o convívio humano, não é mesmo? Ainda mais em tempos de falatório e pouca atenção.

Conversamos com Cláudio, que acaba de lançar o livro Ser Bom Não é Ser Bonzinho (Editora Paidós), sobre esse gesto de abertura e receptividade. Em meio às risadas e às histórias do cotidiano que perpassaram nosso bate-papo online, ele insistiu num ponto: A escuta começa em nós. E ela nasce da presença. O bonito é que a qualquer momento podemos nos tornar melhores “escutadores”. Saiba como, a seguir.

Vivemos o fenômeno coletivo da “desescutação”, como vocês dizem no livro. De onde vem tanta vontade de falar e quase nenhuma de escutar?

Trabalho com Educação há muitos anos e percebo que não fomos devidamente ensinados para a escuta, tanto em casa quanto na escola. Nas empresas também se valoriza aquele que fala e até se antecipa. Não damos importância ao escutar. Fica a sensação de que quem sabe fala, quem não sabe escuta. E não percebemos o quanto o escutar é proponente também.

É como se apenas a assertividade da fala tivesse valor…

Numa palestra recente, o Christian Dunker trouxe a história de que, segundo estudos, a maioria das pessoas que trabalhavam nos campos de concentração nazistas eram funcionários ideais para as empresas hoje. Elas tentavam ser tão prestativas que se antecipavam a tudo o que o comandante do campo poderia pedir. Elas eram assertivas, otimizadas, estavam sempre um tempo à frente.  Isso tira a pessoa de um estado de conexão com si mesma, até para, nesse caso específico, ela perceber o que estava se passando à sua volta. Viviam no modo “funcionar” e não no modo “perceber”. E perceber é no aqui e agora. O sujeito pode se antecipar e antever, mas o criar, a boa criatividade está ligada ao momento presente.

Estar aberto, inteiro e disponível para a escuta é um grande desafio nos dias de hoje.

Sim. Primeiro por questão de tempo, esse tempo louco em que a gente tem que fazer cada vez mais coisas. Exigências e demandas que se somam, ao passo que o cérebro, para funcionar, requer um mínimo de atenção para cada tarefa.

Você afirma que escutar é brincar. Pode explicar melhor essa ideia?

Esse é um ponto chave do livro, o que chamamos de escuta lúdica. Eu sempre brinquei. Um dia me disseram: Enquanto algumas pessoas meditam, você brinca. Brincar é um estado de conexão profunda comigo mesmo. No brincar da infância não existe futuro nem  passado. Estávamos inteiros, ali, brincando de esconde-esconde atrás do sofá.

Esse estado profundo de conexão é o que permite que a gente escute verdadeiramente. Nesse sentido, o brincar é o habilitador de uma escuta muito mais ampla do que essa que a gente experimenta no dia a dia.

Em quais momentos você se sente mais psicanalista do que palhaço?

O Christian diz que, depois do livro, ele se sente muito mais palhaço. E eu me sinto um pouco psicanalista por causa dele. Sempre trabalhei de forma intuitiva e tinha medo de entrar numa abordagem mais terapêutica, porque sou palhaço, não terapeuta. E é comum as pessoas procurarem curso de clown por indicação de seus terapeutas. Hoje, muito longe de conhecer a psicanálise, tenho um pouco mais de consciência do lado psicanalítico do meu ofício, graças ao convívio com o Christian. Tenho outra percepção dos recursos que eu já usava e do que pode aflorar nas pessoas a partir da nossa troca. Acredito que o encontro com o palhaço deve servir para que ambos criem um espaço de reverberação de escuta. O que vai possibilitar que a plateia se transforme não é o número do palhaço e sim o espaço que esse número cria para que a pessoa se veja.

Que transformação você nota nas pessoas que se sentem escutadas?

Recentemente, uma pessoa escreveu um e-mail lindo contando sobre o processo de escuta que ela teve comigo. Ela diz que viveu a vida inteira sem aprender a pedir. Muito do que a gente vive, quando se permite encontrar consigo mesmo e com o outro, é essa percepção de que a autonomia não prescinde o ato de pedir.

Quanto mais pedimos, mais autônomos ficamos, porque faz parte da autonomia perceber-se integrado numa rede de trocas. Muito do processo da escuta é perceber que a gente está só porque quer.

Nós construímos muros desnecessários…

E colocamos a culpa no muro do outro. “Você não me ofereceu”. Ué, por que você não pediu?

Escutar com qualidade é algo que se aprende, vocês afirmam no livro. Por onde começar?

O fato de alguém perceber que precisa aprender a escutar já revela que essa pessoa está escutando muito.  A partir daí cada um vai encontrar o seu movimento. Existem muitas técnicas. Mas tudo será instrumento para que a pessoa perceba o melhor caminho para si. Ela pode inclusive inventar um novo caminho e, quanto mais autêntico, melhor será. Um bom jeito é ser anfitrião de pessoas, porque isso nos coloca num estado de buscar ser hospitaleiro, que consideramos o primeiro passo da escuta. Mas, atenção: Se você estiver pensando em ser um bom hospedeiro, estará preocupado com si próprio e não com o outro. Em compensação, se você se conectar com o outro profundamente, irá perceber o que ele está precisando e querendo. Ou poderá perguntar: Do que você realmente precisa? Como posso ajudá-lo?

O que a escuta tem a ver com a capacidade de improvisar?

As duas são irmãs siamesas. Se você não escutar, não irá improvisar. É como o professor que prepara a aula, vai com o roteiro, a turma está odiando, mas ele não sai daquilo. Ele está conectado com o que projetou e não com o que está acontecendo. Só escutando você será capaz de mudar o meio sem perder o foco no fim. Aí o escutar volta para um conectar-se consigo. A escuta começa com você. Para improvisar, precisamos estar realmente conectados com o nosso repertório e não com o repertório que gostaríamos de ter.

Os palhaços têm muito a nos ensinar sobre isso…

O palhaço chato é aquele que já chega preenchido, com a piada pronta. O palhaço tem que chegar vazio, para perceber o que está acontecendo, mas inteiro o suficiente para ser capaz de acessar o seu repertório e assim se conectar com o aqui e agora, sem negar a realidade. É isso o que vai possibilitar o improviso. E também a ousadia de arriscar. Você só é capaz de transformar a realidade se aceitar o que está acontecendo. O que, é importante ressaltar, não significa se submeter a ela.

Qual o papel da cooperação na “liga” da comunicação?

A escuta mais profunda e verdadeira requer que transitemos do modo competição para o modo cooperação. Se eu conseguir transitar, conseguirei ser um bom anfitrião, ainda que discorde do outro. Aí já existe cooperação. A gente vive de um jeito em que o outro mal terminou de falar e dizemos: “E vou além. E digo mais. Não é bem assim”. A pessoa nem teve tempo de refletir sobre o que acabou de ouvir e já quer ser melhor do que o outro.

Num processo de escuta mais cooperativa, você realmente recebe o que o outro falou para poder compor com ele, o que não quer dizer concordar com ele. É só compreender.

Em tempos polarizados, com tantos desentendimentos e cisões entre pessoas próximas, como escutar aquilo que nos desagrada no outro?

Este está sendo um dos maiores desafios da minha vida. O que eu tenho feito para não me machucar tanto é, em primeiro lugar, perceber o meu limite. E depois compreender que com algumas pessoas minha escuta será uma escuta de convencimento. Vou querer convencer o outro de que não faz sentido ele ser racista, por exemplo. De algumas pessoas assim, eu me afastei. Não tenho o que fazer com isso. Quando surge algum tipo de provocação, minha tática é fazer pergunta atrás de pergunta, para que a pessoa se escute ou se enrede na sua própria falta de argumentos ou ainda seja estimulada a pensar por ela mesma e não valendo-se de generalizações. No entanto, para aqueles que são valiosos para mim, eu me abro para escutar, ainda que eles pensem de forma muito diferente da minha.

Como o exercício da escuta pode transformar as pessoas?

O ofício do psicanalista é criar espaço para que a pessoa se escute; e se escutando seja capaz de se dar conta; e se dando conta seja autonomamente capaz de querer mudar ou não. O brincar tem muito disso. Quando eu brinco com o outro, nós estamos nos transformando juntos naquele instante, aquele momento está sendo transformado por ambos.

A escuta é essa centelha em que a gente se conecta com a gente mesmo e por isso pode ser tão transformador. Não existe transformação possível que não passe por você se escutar.

Cláudio Thebas

Palhaço, escritor, educador pós-graduado em Pedagogia da Cooperação, além de palestrante e consultor corporativo, Cláudio Thebas é especialista em questões essenciais do relacionamento, como construção da sensação de pertencimento, da confiança e da escuta.

Também é fundador do Laboratório de Escuta e Convivência (LEC) e co-fundador das Forças Amadas, grupo especializado em atuar na reconstrução humana de moradores de regiões que passaram por algum tipo de catástrofe, como em Teresópolis (RJ), destruída pelas chuvas de 2011.

Contato

(11) 99967-5916

contato@escutaeconvivencia.com.br

http://claudiothebas.com.br/
tags
Para o topo