Cuidado com o seu narcisismo

Christian Dunker explica e desmistifica esse conceito popularmente conhecido.

O psicólogo, psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo (USP) Christian Ingo Lenz Dunker tem se tornado uma figura cada vez mais conhecida. Nas redes sociais, no canal YouTube, em programas televisivos, na publicação de livros, em reportagens, palestras e grupos de estudo, ele clarifica os mais diversos temas que compõem a condição humana, a partir da ótica psicanalítica. Sua fala simples, generosa e de imensa profundidade, provoca vastas reflexões. Dunker é um dos mais importantes pensadores da atualidade e nesta entrevista sobre narcisismo, o psicanalista discorre sobre o tema, explicando os vários tipos narcísicos, suas patologias e por que defender incondicionalmente o próprio narcisismo nos afasta dos nossos desejos. Boa leitura!

O que é o narcisismo?

O narcisismo é o momento da vida das pessoas em que surge um Eu, uma consciência de si, a capacidade de conseguir se reconhecer nas coisas que são suas, nos traços que são seus, nas imagens que te representam, no corpo que você começa a se sentir o dono e o responsável por ele. O narcisismo seria, ao mesmo tempo, um momento na vida da criança, quando se forma uma estrutura psíquica que, a partir de então, vai permitir que a gente se reconheça nos outros, que os outros se reconheçam na gente, que a gente reconheça o reconhecimento que os outros têm em relação a nós. E que, portanto, é um dispositivo básico da nossa socialização, de como a gente forma uma identidade a partir do narcisismo, forjamos nossa relação com ideais, nos avaliamos, nos julgamos, nos comparamos e como a gente se faz amar e ama a partir do narcisismo.

Então, o narcisismo precisa do outro?

O narcisismo é o nascimento, a formação de uma gramática básica da sua relação com o outro. Alguém sem narcisismo é alguém que não conseguiria se socializar porque não conseguiria se colocar no lugar do outro, não conseguiria ver-se a partir do lugar do outro, não conseguiria reconhecer-se. Tudo isso é dado pelo narcisismo. Seria péssimo uma pessoa sem narcisismo.

Sendo assim, o dito popular “essa pessoa é muito narcisista”, que dá a entender que é o tipo de pessoa que só olha para si, que só está interessada em si mesma, não é correto?

Esse é um erro conceitual, a pessoa está identificando narcisismo e egoísmo. O narcisismo teria uma relação mais direta com a libido. O egoísmo tem uma relação com o interesse. Em geral, o que as pessoas estão criticando quando dizem “o narcisista é um egoísta”, é que ele não combina com o meu narcisismo. Por exemplo, eu tenho um narcisismo de tipo altruísta, que é menos perceptivo na cultura e na sociedade, mas são aquelas pessoas que estão o tempo todo preocupadas com o outro, só querem cuidar do outro, se sentem culpadas quando o outro não está contente, satisfeito. Elas se devotam absolutamente para o outro, se descuidam a ponto de se entregarem completamente para o outro. A gente vai dizer: “bom, essa pessoa não é narcísica”. Mas essa é uma patologia do narcisismo. Por que? Justamente porque a pessoa está fraturando essa relação mútua com o outro, ela está oferecendo algo para o outro que o outro não lhe devolve em contrapartida. Muito frequentemente, isso está encoberto por idealizações do tipo: “é isso que eu devo ser, que me torna alguém belo, justo, que vai ter um lugar no céu”. Narcisismo! Veja, a pessoa está, no fundo, muito interessada, sim, em si, só que o si em um outro plano, o si em outro lugar.

Quais outros tipos de narcisismo existem?

As pessoas perfeccionistas. Muita gente tem essa saída numa entrevista de emprego: “Qual é o seu principal defeito?”. “Eu sou perfeccionista”. Como se isso fosse uma grande jogada. É péssimo, porque o perfeccionista é um tipo de narcisista. Ele está sempre se colocando ideais muito elevados, muito inalcançáveis, no fundo está dizendo assim: “eu sou uma pessoa muito grandiosa, estou prometida para um lugar muito elevado”. O que é muito ruim, porque vai levar a relações com o outro que  vai se sentir sempre menos, não à altura daquele perfeccionismo que aquele sujeito quer instituir como norma. As popularmente chamadas situações de baixa autoestima, menos valia também são perturbações de natureza narcísica. Às vezes causadas justamente por essa ideia de que: “eu tenho para mim um ideal de Eu muito grandioso e que nenhuma realidade é capaz de satisfazer ou proporcionar”. Aí a pessoa se sente um pobre coitado, mas, no fundo, ela está com uma volumetria narcísica alterada.

O que o narcisismo tem a ver com o exercício de alteridade?

Alteridade pode incluir a alteridade narcísica. Há um tipo de alteridade, que é dada por todo um universo bastante esquecido e menos tematizado, que diz respeito ao real. Uma coisa é como você me vê, outra coisa é como eu vejo você me vendo, outra coisa é o que você acha de mim, as minhas opiniões, o que eu posso achar de você ou outra coisa é o real. Então, o real tem um choque com o narcisismo. O narcisismo não quer saber do real.

O que seria o real?

Por exemplo, a angústia, a mortalidade, a nossa finitude, as contradições, o mundo que é esférico, não é plano, isso tem a ver com o real, o real que a ciência pode nos informar um pouco, o real tem várias figuras, todas elas ofensivas ao narcisismo. Por isso, Freud dizia que a Psicanálise é a terceira ferida narcísica: a primeira veio com Copérnico que disse “a gente não é o centro do universo”, a segunda veio com Darwin que disse que a gente não é o centro das espécies e veio Freud e disse: “olha, o seu Eu, o seu narcisismo, não é nem mesmo o centro do seu ser, não é o senhor na sua casa, quem manda é a libido, o desejo, as suas fantasias. Você acha que manda”. Então, uma figura fundamental da alteridade é justamente o nosso desejo, não os nossos interesses. É aquele drama, por exemplo, que a gente tem quando a gente gosta de alguém, está apaixonado, mas não consigo ir lá e dizer para aquela pessoa que eu gosto dela. Por que? Porque se você disser do seu desejo, você pode ofender profundamente o seu narcisismo. O outro pode dizer: “mas eu não gosto de você”. Isso é o quê? Uma humilhação narcísica. A gente pode dizer: o que você prefere para a sua vida? O seu orgulho, o seu narcisismo, a proteção da sua imagem ou colocar o seu desejo na frente? Vai colocar o seu desejo na frente, vai colocar uma alteridade que ofende o narcisismo.

E isso dói…

Isso dói, isso faz a gente sofrer. É justamente por isso que o desejo aparece com uma alteridade em relação ao narcisismo, assim como o real é uma alteridade também ao narcisismo.

Christian, por que é importante descobrirmos os nossos desejos?

Se você não olhar para os seus desejos, você não é o diretor do teatro da sua vida, você é um mero personagem, sempre obedecendo as ordens do seu chefe ou de pessoas que vão instrumentalizar o seu narcisismo para obter vantagens com isso. Vantagens, por exemplo, exploratórias no seu trabalho, vantagens políticas, pessoas que vão dizer assim: “olha, todo mal está alí, nesse partido. Se a gente eliminar aquele partido, vai ficar ótimo, se a gente eliminar aquelas pessoas, a vida vai ficar muito mais fácil”. É uma forma de usar o narcisismo das pessoas – o narcisismo mais simples, mais débil, mais frágil – para dizer assim: “fora do nosso grupo você não é nada, você não é ninguém, fora da massa você está em perigo, você tem que ter medo”. Essa é uma dominação banal das quais as pessoas se entregam quando não querem saber do seu desejo e quando preferem a coesão narcísica dos valores da família, da tradição. Mude-se para um condomínio onde todos são iguais a você. Olha só que ótimo! Uma solução narcísica. Daqui a pouco você vai estar sofrendo e nem sabe pelo quê. Estamos vivendo um momento narcísico que é um momento de convicção social fortemente orientada para a adequação. “O que eu espero de você é que você se adeque, que você se conforme, que você siga a norma, que você obedeça, que você seja um bom comportado. Seja qual for a norma. Pode ser a norma mais louca”.

Quais são as outras patologias do narcisismo?

Ser incapaz de ter empatia pelo outro, de partilhar seu sofrimento, impor ao outro o seu modo de gozo ou a sua forma de vida. Desorientar-se na vida, não saber o que quer, sentir-se vazio, entediado, diminuído permanentemente, cronicamente, achar que está sempre inadequado com relação ao seu corpo, sempre mais gordo ou mais magro ou mais alto ou mais baixo ou insuficientemente belo, como uma maldição. Uma vida em estado de regime. Para quê? Para consagrar-se ao seu narcisismo. Muitas vidas são empobrecidas porque nelas só têm espaço para a manutenção e reposição de questões narcísicas com total esquecimento e descuido com o próprio desejo.

Christian Ingo Lenz Dunker é psicólogo, psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo (USP), onde se formou e frequentou também os cursos de Filosofia e Ciências Sociais. É mestre e doutor em psicologia pela USP, fez pós-doutorado na Manchester Metropolitan University. É psicanalista membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano (A.M.E.) com ativa participação na disseminação do pensamento de Jacques Lacan no Brasil. Junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr., fundou o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip-USP). Autor de diversas obras, recebeu, em 2012, o Prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise e, em 2016, de segundo melhor livro em Psicologia, Psicanálise e Comportamento.

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