Sofrimento que cura
Bel Cesar, psicóloga clínica praticante da psicoterapia sob a perspectiva do budismo tibetano, fala sobre as emoções, a importância de saber senti-las, como atravessá-las sem se perder e por que o sofrimento persiste
“A dor que não vai embora é aquela que não foi sentida, vista e reconhecida.”
Essa é apenas uma das inúmeras pérolas desta entrevista com Bel Cesar, de São Paulo. Com maestria, ela fala sobre como lidar com as emoções consideradas negativas, o que acontece quando fugimos delas, por que temos a tendência de fugir do mundo emocional, o que aprendemos e ganhamos quando nos permitimos sentir essas emoções e o que ocorre quando pulamos essa etapa. Autora de inúmeros livros (veja no final desta entrevista na legenda da sua foto), Bel é mãe de Lama Michel, o conhecido mestre do budismo tibetano, que aos 13 anos de idade decidiu trilhar a vida monástica com o Lama Gangchen Rinpoche.
A sabedoria de Bel, que une psicologia e o conhecimento do budismo tibetano, é de grande benefício a todos que carecem de compreensão sobre si mesmos, o que pede um olhar para dentro e o contato com as próprias emoções. Bel concede, nesta entrevista, essa guiança.
Por que tendemos a fugir das dores emocionais?
Como herança da era vitoriana, fazemos parte de uma cultura na qual expressar abertamente os sentimentos não é bem visto. Fomos adestrados a não sentir e a não expressar as emoções, o que ocorre com grande frequência até hoje. Muitos de nós fomos educados por pessoas que não demonstravam seus sentimentos. Nesse ambiente, ser emocional, “sentir algo a mais”, era visto como um sinal de vulnerabilidade e fraqueza. Hoje em dia, numa reunião de trabalho, por exemplo, se alguém chorar, há uma grande chance de ser mal visto. Aprendemos erroneamente que ser superior às emoções era o modo certo de nos tornarmos adultos. No entanto, há uma grande diferença entre sentir as emoções para saber como e onde direcioná-las e a habilidade de reprimi-las como modo de não deixar que venham à tona e nos desequilibrar.
Como assim?
Talvez muitos tenham escutado a frase “engole esse choro” quando eram pequenos. Saber parar de chorar é bem diferente de engolir o choro! Uma coisa é aprender a se autocontrolar, outra é suprimir a dor por meio de não senti-la. Quanto mais fugirmos de uma emoção, menos familiaridade teremos com a experiência de transformá-la em aprendizado. Uma pessoa que teme a si mesmo, conhece pouco os seus recursos internos, como a paciência, o discernimento e a coragem. A resiliência diante da dor – isto é, a nossa capacidade de atravessar uma dor emocional e sair dela mais forte – surge no ato de sustentar essa travessia dando suporte a si mesmo até que a mudança possa ocorrer. Não sentir significa abandono. Não desistir de si mesmo é um ato de autocompaixão.
Como isso pode ser feito?
Podemos começar nos perguntando: “Como posso me acolher sem me por para baixo? Está difícil. O mundo pode me tratar mal, mas ainda assim eu posso me tratar bem. O que preciso agora?”. Saber de si implica não ter medo de se consultar, tanto os nossos pensamentos, sentimentos quanto nossas sensações físicas decorrentes do mal-estar que surge quando as emoções estão fortes demais. Quando cultivamos um estado de honestidade e abertura com nós mesmos, temos coragem de sentir até mesmo o que não sabemos denominar.
Quais ganhos temos entrando em contato com as próprias emoções?
Muitas vezes, o “ mundo” pede de nós o que ainda não temos para oferecer. Quanto melhor reconhecermos nossas emoções, menos nos sujeitamos cegamente à imposição alheia. Em outras palavras, quanto mais conhecemos nossos recursos e vulnerabilidades, menos atribuímos ao outro a responsabilidade por eles. Conhecer nossa vulnerabilidade é um modo de nos fortalecer. Lembro-me do Tomé, o cão de minha filha, que tremeu de medo quando subiu pela primeira vez uma escada caracol. Momentos mais tarde, vimos que ele estava sozinho, treinando subir e descer a escada. Se não enfrentarmos nossa vulnerabilidade, acabaremos presos em situações praticamente insuportáveis. Porém, muitas vezes parece mais difícil sair do que permanecer nelas. Simplesmente não temos nem força para deixá-las.
Nesse caso, o que podemos fazer?
O primeiro passo é reconhecer a presença de uma mente satisfeita. Podemos começar identificando esse estado mental no momento em que aliviamos a sede ao tomar um copo d´água, quando refrescamos o corpo quente com um banho de água fresca ou quando nos sentimos em sintonia com o olhar de uma outra pessoa. É uma experiência sensorial, sentida no corpo. Se em algum momento, eu já entendi que consigo me sentir bem num canto da minha sala deitada num sofá, quando eu tiver num momento de ansiedade, por exemplo, eu sei que se eu for para lá, eu conseguirei me sentir melhor. Eu preciso ter alguma experiência para onde eu volto nesses momentos mais difíceis.
Outro exemplo: uma pessoa que não se sente amada. A autoimagem que ela tem é de não receber amor. O que essa pessoa precisa perceber é que quando ela está com alguém, em vez de ficar avaliando mentalmente a pessoa que ela está, ela pode começar a sentir no corpo essa sintonia boa de estar com outra pessoa. Assim, ela baixa a sua crítica mental e passa a perceber que a solidão dela não é tão grande assim. Por isso é importante reconhecer essas pequenas sensações de bem-estar registradas no corpo, pois isso faz com que nos momentos difíceis eu volte para esse lugar dentro de mim que me atende, onde você se faz companhia. Descobrimos que podemos contar com nós mesmos! Porém, ficamos viciados nos estímulos externos. A gente não se reconhece como fonte de bem-estar.
Por que o sofrimento muitas vezes persiste?
Um dos aspectos que evidenciam que uma pessoa seja saudável emocionalmente é a sua disponibilidade de explorar em profundidade os seus próprios problemas. Ou seja, é capaz de sondar e refletir sobre o seu lado obscuro, vulnerável, medroso e sensível às críticas. Há uma esperança subjacente de que se nos conhecermos muito bem saberemos superar todas as nossas dores emocionais. Não se trata de deixar de sentir emoções desagradáveis, mas sim de aprender a atravessá-las. A dor que não vai embora é aquela que não foi sentida, vista e reconhecida. Como diz Rachel Naomi Remen em seu livro As Bênçãos do Meu Avô (ed. Sextante): “Cada grande perda exige que façamos uma nova opção pela vida. Para tanto, precisamos sofrer e lamentar. A dor que não é sofrida transforma-se numa barreira entre nós e a vida. Quando não sofremos a dor, uma parte nossa fica presa ao passado, como a mulher de Lot que, no relato da Bíblia, ao olhar para trás transformou-se em estátua de sal.”
Muitas vezes, tememos entrar em contato com certas lembranças que nos fazem sofrer. Temos medo de sermos destruídos por elas, mas é sentindo a dor que ela se dissolve. Uma vez que nos aproximamos afetivamente de nossa dor, deixamos que ela parta. Podemos penetrar na dor e sair dela melhor do que estávamos. Em geral, aquilo que dói revela em nós algo que não gostamos de admitir. O problema é que associamos a ideia de sofrer com a de fracassar. Mas o sofrimento em si não é uma derrota, mas parte de um processo de cura. Por isso, para nos libertarmos da dor que resta, há algo que ainda deve ser feito: permitir sua existência para que ela, depois, se vá. A dor que não vai embora clama por atenção e empatia. É por isso que a dor cresce diante de críticas e julgamentos. Para nos aproximarmos dela, temos de deixar de lado o desejo de justiça em relação ao passado e olhar para a frente. Se continuarmos a carregar as mágoas do passado, estaremos fadados a reencontrá-las no presente ou no futuro.
Cabe ressaltar que penetrar na dor não significa mergulhar de cabeça num precipício. Isso pode ser feito gradativamente, sentindo a dor apenas para superar nossos preconceitos e resistências em relação à ela.
Quais outros cuidados é preciso ter nesse processo de sentir a dor?
Se encarar a dor servir apenas para aumentar a cobrança sobre o que poderíamos ou deveríamos ter feito, levando a atitudes auto-destrutivas, de fato irá causar muito mal. Quanto mais exigimos de nós mesmos, menos conseguimos olhar o problema de frente. Podemos contornar a dor até estarmos prontos para encontrá-la, como se fazia nos antigos footings, aos domingos, nas cidades do interior. Neles, rapazes e moças se cortejavam dando voltas na praça em direções opostas e só quando estavam prontos para se aproximar é que se sentavam nos bancos para se conhecer melhor.
De acordo com minha tia, a segunda volta era uma grande emoção, pois nela estava a chance da confirmação do encontro de olhares. A cada volta, nos aproximamos mais de nossa meta. Aprimoramos nosso olhar. Suavizamos as angústias que surgem antes de entrar em contato direto com nosso alvo. Olhar de modo honesto, sincero e direto para nossa situação não é uma atitude de condenação. Não devemos criar um veredicto a respeito de nós mesmos. Ao contrário, temos que nos dar a liberdade de mudar! Podemos tocar a dor com uma atitude amorosa.
Assim como ensina o ditado budista: “Não se apegue, nem rejeite; então tudo será claro.” Por isso, se, ao sentir a dor, começarem os discursos mentais de revolta, é hora de sair dela novamente. E dar mais voltas em torno da praça, espairecer a ansiedade, criando coragem novamente. “Primeiro, temos de tornar pequeno um problema que vemos como grande; a partir daí, ele poderá ser dissipado”, nos alerta Lama Gangchen Rinpoche.
Então, é preciso primeiro se acalmar?
Quando estamos calmos, naturalmente nos aproximamos do centro, pois as barreiras de defesa já não são mais tão sólidas. Menos resistentes, já não tememos tanto o que antes parecia ameaçador. Quando compreendemos a dor, não estamos mais à mercê dela. Podemos nos libertar, à medida que conseguimos ler a mensagem que ela nos dá. Converse com a sua dor. Pergunte à ela: “O que você quer me ensinar?”. Uma vez que tenha compreendido sua mensagem, faça algo prático com essa nova percepção. E, assim, poderá testemunhar sua real transformação.
Você disse anteriormente, que reconhecer a presença de uma mente satisfeita é o primeiro passo para sairmos das situações que nos causam grande sofrimento a ponto de não termos forças para sair delas. E qual é o segundo passo?
Ampliar a visão que temos sobre nosso próprio sofrimento. Certa vez, ficamos realmente preocupados quando Lama Gangchen Rinpoche teve de passar um medicamento numa ferida no pé porque sabíamos que ia doer muito. Ele nos disse: “A dor não é um problema. O importante é o resultado.” Assim, segundo esse ponto de vista, não importa o sofrimento, mas sim se estamos fazendo algo para melhorar nosso mundo interior ao enfrentá-lo. Mas, às vezes, estamos tão cansados de sofrer que não conseguimos sentir alguma felicidade sutil. Assim que reconhecemos que, ao lidar com o sofrimento de uma forma positiva, podemos fazer algumas mudanças positivas, então podemos tornar a sentir essa felicidade sutil.
Em 1994, quando minha filha Fernanda e eu fomos à cerimônia de entronização de Lama Michel em Sera-Me, no sul da Índia, tivemos um momento intenso de sofrimento em que tivemos de dizer adeus e voltar para o Brasil. Lama Michel tinha 13 anos e Fernanda, 9. Ela estava prestes a se separar não só de seu irmão como também de seu pai, que ia ficar com Lama Michel em Sera-Me. Ela começou a chorar em desespero. Eu me desesperei ao ver seu sofrimento e perguntei diretamente a Rinpoche: “Como podemos parar de sofrer?”. Ele respondeu: “Desfrutando e crescendo”. Então, com entusiasmo, eu disse à Fernanda: “Agora nós estamos indo para Londres”. Ela se acalmou e aceitou ir embora.
Assim, Rinpoche nos inspira a nos conectarmos com a alegria da vida. Quando Rinpoche nos diz para conectarmos nossa mente com o lado positivo, entendo que isso significa não apenas estar com ideias positivas, mas também com esse sentimento de ser feliz.
Geralmente estamos tão sintonizados com o sofrimento que não percebemos a possibilidade de sentir essa felicidade sutil. Quando nos sentimos capazes de lidar com o sofrimento, somos capazes de sentir essa felicidade sutil. Cada cultura tem sua maneira de entender e de criar sua própria realidade, mas as necessidades ontológicas permanecem as mesmas, os valores fundamentais que orientam e organizam as pessoas.
De quais valores você está falando e por que os valores organizam as pessoas?
De justiça, solidariedade, gratidão, autenticidade, liberdade, generosidade e empatia. Esses valores não precisam ser “ensinados”, pois são ontológicos, próprios do ser humano. Mas, precisam ser desenvolvidos. Nas cidades, onde a violência é tão grande, ansiamos por “humanidade”. Nossos valores esclarecem nossas prioridades e nossas escolhas. Quanto mais estivermos ligados aos nossos valores, melhor poderemos lidar com o sofrimento.
Bel Cesar é psicóloga clínica praticante da psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano. Dedica-se, desde 1990, ao acompanhamento de quem enfrenta a morte e ao tratamento do estresse traumático pelo método Somatic Experiencing (Experiência Somática). É também autora dos livros: Viagem Interior ao Tibete, Morrer não se Improvisa, O Livro das Emoções, Mania de Sofrer, O Sutil Desequilíbrio do Estresse (em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz) e O Grande Amor – Um Objetivo de Vida (em parceria com Lama Michel Rinpoche).
Elaborou o livro Oráculo I Lung Ten, compilando 108 predições de Lama Gangchen Rinpoche e outros mestres tibetanos. Todos eles editados pela Editora Gaia – podem ser adquiridos pelo site da Livraria Cultura (www.livrariacultura.com.br). Desde 2004, em parceria com Peter Webb, desenvolve atividades de Ecopsicologia no Sítio Vida de Clara Luz, em Itapevi, no interior de São Paulo. É conselheira da Fundação Lama Gangchen para a Cultura de Paz. Bel é também formada em musicoterapia pelo Instituto Orff, em Salzburg, Áustria.
CONTATO DE DIVULGAÇÃO: belcesar@vidadeclaraluz.com.br