Mente e corpo sempre conectados

Assim como a terapia floral, a psicossomática explica por que os fatores emocionais influenciam no adoecer. Nesta entrevista, a psicanalista e psicóloga Aline Eugênia Camargo fala sobre o assunto e aponta algumas das principais ações preventivas para que a descarga de ordem mental não vá direto para o corpo.

Em uma conversa detalhada, Aline Eugênia Camargo, psicóloga, psicanalista, que trabalha com Psicossomática Psicanalítica, fala sobre o universo da psicossomática. Segundo esse campo de trabalho, as doenças – como as autoimunes e a fibromialgia, por exemplo – são resultado de um conjunto de fatores que incluem as emoções e os pensamentos. Quando não se olha para esses âmbitos, essa dor emocional se acumula no corpo e leva ao adoecimento.

“Por um lado, hoje os médicos se dão mais conta de que os fatores emocionais interferem, mas não são preparados para entrar em contato com isso, para saber o que fazer na consulta”, diz Aline, que também é professora dos cursos Psicossomática Psicanalítica e Corpo, Clínica Contemporânea e Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

A psicanalista revela também as características da sociedade atual que nos afastam do mundo interior, de nós mesmos, e que nos faz viver de modo mecânico. E aponta soluções, como as relações humanas mais autênticas, o humor, a expressão pela arte e as terapias complementares. Fala também sobre os cuidados com as crianças no sentido de ajudá-las a entrar em contato com suas frustrações e sofrimentos – sem negá-los ou escondê-los.

O que é psicossomática?

É a disciplina que trabalha com as relações entre mente-corpo. Como em outras disciplinas pode ser abordada através de vários enfoques. A psicanálise recoloca a importância da integração mente-corpo que foi quebrada com o pensamento cartesiano ocidental e que impera no campo da saúde. Na Grécia Antiga, na medicina de Hipócrates, eles funcionavam juntos, não havia distinção e é isso que a psicossomática vem resgatar, a ideia de que o que se passa no psiquismo está ancorado no corpo e o que se passa no nosso corpo está intimamente ligado às nossas vivências pessoais, psíquicas e emocionais.

Como a psicossomática psicanalítica entende as causas das doenças e das dores manifestadas no corpo físico?

A Psicossomática Psicanalítica entende que o adoecimento é determinado por múltiplos fatores. Recebe interferência de fatores genéticos, ambientais, entre outros, que incidem no equilíbrio psicossomático. Esse equilíbrio não é estático, mas dinâmico e se relaciona com a história de vida de cada um e ao modo como cada um reage às experiências da vida. Refere-se aos recursos psíquicos que construímos e que nos auxiliam nos momentos difíceis que a vida nos apresenta.

Portanto, todo adoecimento é psicossomático. Hoje, já não se entende que existam perfis de personalidade para cada doença ou que elas tenham um significado específico, entendemos sim que adoecemos quando temos um acúmulo que não encontra meios para escoar.

Quais seriam esses recursos?

Diante dos problemas, podemos apresentar reações ou manifestações. Pela somatização, reagimos adoecendo. Desse modo, entendemos as doenças e dores como um recurso “mais primitivo” de lidar com o sofrimento, tal como as crianças que adoecem para expressar um mal-estar quando os pais se ausentam. Os recursos psíquicos são aqueles que expressamos pelos afetos, como a tristeza, a angústia, pela nossa criatividade para resolver os problemas ou mesmo através de um sintoma, como uma fobia.

Outro recurso se revela na ação ou em reações de descarga. Uma pessoa, por exemplo, que procura por uma luta ou por uma caminhada para descarregar uma tensão, pode ser bom. No entanto, algumas pessoas começam uma academia ou um ginástica e se excedem, treinam muito a ponto de fazer lesões no corpo. Outro comportamento de descarga na ação é o de correr risco, isso que é comum na adolescência, buscar experiências de aventura, às vezes volta em outras fases da vida e de modo mais destrutivo, como em excesso de festas, bebidas… A pessoa não sabe o que fazer com aquele excesso e começa a correr demais e parte para um esporte radical e esse momento de risco é o momento em que ela tem aquela descarga de adrenalina, mas pode se colocar em risco.

Há patologias que se manifestam na área da ação como as compulsões, no uso abusivo de drogas, nos transtornos alimentares, como anorexia e bulimia, ou mesmo nas compulsões alimentares, na obesidade, nas compulsões por jogos, por internet e mesmo por trabalho! Certos acidentes graves, de crianças, por exemplo, podem ter sido causados por sobrecarga psíquica, por falta da capacidade ou da condição de dar um destino melhor ao excesso, o que chamamos de elaboração. Pode ser por falta de um ambiente acolhedor para os momentos difíceis na família, na escola ou com amigos. Isso faz com que a criança descarregue naquilo que está mais próximo dela, machucando-se. São os casos de impulsividade, as crianças hiperativas também trazem essa dimensão. Por isso, o brincar na infância é tão importante, e para isso é preciso ter tempo para brincar, que os adultos valorizem essa atividade. A capacidade de brincar não é dada, é preciso que seja desenvolvida em condições favoráveis a isso.

Você pode dar alguns exemplos desses excessos?

As excitações são aquilo que nos agita e nos impele a fazer algo. Elas podem ser de ordem interna ou externa. As excitações internas referem-se aos nossos desejos e necessidades que nunca serão totalmente realizados. Desse modo, temos que dar conta das frustrações, daquilo que não temos ou do que não podemos fazer. Dentro das excitações internas temos excitações construtivas, como as amorosas, mas temos também as de raiva e de destrutividade, próprias do humano. Essas excitações podem se tornar excessivas e intoleráveis. As excitações externas se referem ao ambiente em que vivemos que pode ser muito tumultuado, intensamente frustrante ou muito excitante sexualmente, mas de maneira excessiva e perturbadora.

Por exemplo situações familiares dramática por fatores sociais, econômicos ou psíquicos dos pais, causam tumulto e excesso de excitação. A própria perda ou ausência dos pais na infância é um fator muito desorganizador, o estresse no trabalho por excesso de exigência, por ameaças de perda do emprego ou assédio moral, as relações amorosas tumultuadas, a falta de rotina e de segurança em diversos aspectos com relação ao ambiente também são. As situações sociais como de imigração, a condição de vida dos refugiados hoje também. Essas questões interferem profundamente no equilíbrio psicossomático.

Outro exemplo é o de pais muito estressados, que colocam um alto ideal para os filhos, crianças ou jovens, de que têm que estar em constantes atividades, fazendo exigências que eles não podem cumprir. Essas pessoas ficarão sempre pensando que não estão satisfazendo seus pais, que estão em dívida com eles. São crianças que vão para a escola preocupadíssimas em ter um desempenho excelente, começam a sofrer de dores de cabeça, esse é outro exemplo.

Você falou em dar um “destino mais elaborado”. O que significa elaborar?

Elaborar é realizar transformações nos pensamentos e nas emoções a partir do trabalho psíquico que se processa na consciência e no inconsciente também. Imagine uma pessoa que sofre de uma angústia ou mesmo de tristeza e que procura por uma terapia. Se ela tem uma boa capacidade de elaboração psíquica, ela vai conseguir expressar suas questões através da fala, de imagens e metáforas. Ela vai produzir sonhos. Ela vai falar dos sofrimentos dela e isso vai sendo transformado no decurso do trabalho terapêutico. No campo da psicossomática, vemos que os pacientes não conseguem expressar e nem mesmo perceber seus problemas psíquicos.

O trabalho psicoterapêutico começa em desenvolver uma confiança na relação que permita ao analista construir junto ao seu paciente a percepção do sofrimento psíquico. Um exemplo de somatização por falta de elaboração psíquica: na doença de fibromialgia, uma doença muito citada atualmente, a pessoa apresenta muitas dores no corpo sem ter uma lesão que as justifique. O que ocorre é uma descarga da dor psíquica no corpo, resultado de uma vida que pode ter se tornado muito empobrecida psiquicamente, mais mecanizada, com pouco prazer, o sujeito vai perdendo a vitalidade e nem consegue tomar conhecimento dessa mudança.

Mas, e quem não consegue chorar, entrar em contato com as suas emoções, fazer um luto, chorar a morte de um filho, por exemplo?

Como quando chega um paciente e conta uma situação dramática como a perda de um filho e fala sobre isso de um modo descritivo e sem emoção, sabemos que ele está funcionando de um modo dissociado pela impossibilidade de viver aquela dor. Esse modo de funcionamento traz importantes riscos somáticos, já que são as emoções que protegem nosso corpo do adoecer. A pessoa descreve como foi o enterro, como foi o dia seguinte, mas não se emociona. Acontece desse modo em função da incapacidade dessa pessoa de elaborar o sofrimento, de viver o luto, que se expressa no recolhimento, no choro ou na tristeza de modo a ir ultrapassando a cada dia aquele sofrimento, através do trabalho psíquico.

Por outro lado, a doença cumpre um importante papel, faz com que o sujeito vá buscar aquilo que ele necessita porque quando o sujeito adoece, ele exige cuidados. Esse cuidado é fundamental para a pessoa doente. É por isso que às vezes, numa internação hospitalar, o paciente melhora não só pelo tratamento físico, estrito, mas por receber um cuidado especial. A Psicossomática Psicanalítica tem muito a contribuir na formação dos profissionais de saúde, não só para o psicólogo, mas também para médicos, enfermeiros, dentistas, fisioterapeutas, … Digo isso no sentido de instrumentalizar esses profissionais a lidar com esses recursos nos casos difíceis, crônicos e que não respondem à medicação. Daí a importância do psicólogo no hospital atendendo os pacientes e assessorando os colegas diante dos impasses.

Se o paciente precisa de atenção e cuidado a equipe de saúde também precisa para saber lidar com a dimensão emocional do paciente. Quando a equipe do hospital não está preparada, ela também dissocia. Isso porque todo esse campo de trabalho causa muita angústia. Tratar de um paciente que está sofrendo muito, que tem dores ou um risco de morte, por exemplo, é difícil de suportar. A arte também é uma outra forma que ajuda a evitar esse funcionamento dissociado. O sujeito não chora por alguma coisa que aconteceu, mas aí ele lê um livro e chora pelo assunto do livro. Ótimo! De alguma forma, ele está lidando com suas emoções, está havendo de alguma forma uma descarga de energia identificando-se com o personagem do livro.

Quais são as principais características da sociedade atual que mais levam a adoecer?

São todas as que vão na via contrária do pensamento, da criatividade e da elaboração. Temos necessidade de pausa, de tempo para pensar, descansar e de usufruir de uma convivência afetiva. Quando recebemos pressão por todos os lados no sentido de uma vida estressada, corrida, sem tempo para o lazer e para a convivência, cedo ou tarde aparecem danos à saúde. A psicossomática psicanalítica, como também as práticas da medicina complementar, vêm trazer essa dimensão, da qual a medicina atual se afastou. A meditação, a percepção da sensorialidade, são elementos importantes porque o sujeito que corre muito perde as sensações do próprio corpo. A sensorialidade só é percebida se prestarmos atenção no corpo.

Na sociedade atual, tendemos a ser uma peça em uma engrenagem de produção e consumo cada vez mais desenfreados, é por isso que os distúrbios da alimentação e do sono se proliferam. São aspectos centrais na nossa vida e os primeiros a serem atingidos quando nossa vida entra em desequilíbrio. Esses são indicadores importantes do mal-estar contemporâneo. Perdemos nossos hábitos, a relação destes com as tradições e a cultura e com eles os métodos e recursos para lidar com os desequilíbrios transmitidos por nossos pais e avós. Temos excesso de notícias e de aparelhos interferindo nas relações humanas. Quando alguém não consegue lidar com suas frustrações, consome algo como forma de alívio, e alívio não é prazer.

E isso também aparece com relação ao sexo?

Exatamente. A pessoa que apresenta uma compulsão não percebe, mas ela já perdeu a capacidade de sentir o prazer. O compulsivo sexual, por exemplo, precisa ter tanto sexo para compensar a falta de prazer e camuflar a necessidade de afeto. O consumista também, ele não consegue desfrutar do que tem, por isso compra, compra e compra. O antídoto para isso é a experiência de prazer. Porque o prazer diminui o nível de excitação, acalma.

E o que isso tem a ver com a psicossomática, com o adoecer?

O sujeito que vai deixando embaixo do tapete os conflitos, as amarguras, não tem com quem falar porque junto aos amigos tem que falar somente sobre coisas boas, vai acumulando as necessidades e frustrações no corpo. Isso que são as excitações. A pessoa que não pode contar com o outro numa relação autêntica, seja um amigo, um familiar ou mesmo um terapeuta, pode adoecer. E então vai procurar o médico que precisa ouvir essas questões que estão por trás do adoecer.

Vamos pensar na terapia floral. O que todo esse campo da medicina complementar faz? Olhar o sujeito como um todo. O sujeito está dizendo que dói o pé e você está perguntando como está a vida dele. Hoje os médicos se dão mais conta de que os fatores emocionais interferem, mas não são preparados para entrar em contato com isso, para saber o que fazer na consulta. Nem sempre o encaminhamento para um psicólogo ou para outro tipo de terapia é aceito pelo paciente. O médico precisa ajudar a pessoa a reconhecer essa necessidade dela.

As doenças autoimunes são outro exemplo, nessas o próprio sistema imunológico deixa de reconhecer e passa a destruir suas próprias células. Muitas vezes, essas doenças são desencadeadas por experiências traumáticas que não são reconhecidas como tal, é preciso investigá-las. Em uma abordagem psicossomática, o médico vai ter um olhar maior para esse corpo, vai pensar esse corpo dentro do ambiente, com as relações humanas que o envolvem bem como com a vida emocional resultante deste.

Quais são outras formas de fazermos as descargas pulsionais?

A criatividade, o lazer, a vida imaginativa. Por exemplo, o humor, que envolve todos esses elementos. Não é fazer piada para não pensar a tristeza, mas poder fazer piada sem desdenhar dos conflitos próprios da vida humana. O sonhar é uma forma de descarga dos excessos pulsionais, das preocupações que o sujeito vive no cotidiano. Sono e sonho juntos são restauradores da saúde, do bem-estar, do relaxamento e da busca de equilíbrio.

E quem não sonha?

Seria bom que essas pessoas buscassem um pouco mais esse campo da criatividade, da arte e mais contato consigo mesmas porque isso vai aumentar a capacidade de sonhar. A dança, a consciência corporal e o relaxamento também ajudam. No campo da psicossomática, encontramos pacientes que, além da psicoterapia, são encaminhados para fazer um trabalho de relaxamento. A tensão é tanta que é preciso intervir diretamente no corpo.

Muitas pessoas reclamam de pensar muito, de ter uma mente muito acelerada e de ter muitos pensamentos negativos. Procuram por meditação, massagem, ioga, mas não conseguem sair disso. O que é possível fazer?

Esse é um exemplo de um sujeito que tem uma “má mentalização” (conceito da psicossomática), que não está sabendo o que fazer com os próprios pensamentos, precisa da ajuda de um outro para reconhecer e transformar seu mal-estar. Às vezes só de falar para outra pessoa, no meio da fala a pessoa vai tendo ideias, pensamentos novos, vai mudando. Essa é a base da psicoterapia. Freud (que criou a Psicanálise) descobriu a possibilidade do tratamento pela fala, só de falar para o outro e perceber como o outro se interessa pelos problemas dela, a pessoa já começa a perceber as coisas de outra forma.

Como o acolhimento é importante!

Exatamente. Ser acolhido pelo outro nos ajuda a interiorizar esse acolhimento e nos momentos em que a gente está só, sabermos acolher a nós mesmos, nos aquietar. Mas isso só acontece quando a pessoa teve experiências reais com outras pessoas. Dizemos que a pessoa que não chora, adoece, que a doença é como se fosse o choro no corpo.

PARA SABER MAIS:

– https://mg.mail.yahoo.com/neo/launch?.rand=bfnn5g149p4g1#7336777971
– https://youtu.be/VZ6TFpPysjk
– https://www.facebook.com/Especializa%C3%A7%C3%A3o-Psicossom%C3%A1tica-Psicanal%C3%ADtica-I-Sedes-Sapientiae-SP-181878421854127/

Aline Eugênia Camargo, psicanalista e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, na capital paulista, professora de cursos de especialização que envolvem a Psicossomática Psicanalítica, é também autora do livro Fobia (ed. Casa do Psicólogo) e coorganizadora do livro Figuras Clínicas do Feminino no Mal-Estar Contemporâneo (ed. Escuta).

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