O Dia da Terra: Uma nova relação com o nosso planeta
Os desequilíbrios ambientais que assolam o planeta são um clamor de Gaia para que repensemos nosso lugar na natureza. Como podemos fazer isso? A engenheira ambiental Aline Matulja ilumina importantes veredas.
O Dia da Terra, celebrado em 22 de abril, existe desde 1970, quando o ativista ambiental e senador estadunidense Gaylord Nelson emplacou no calendário internacional uma data para lembrarmos da importância de protegermos o planeta. Não só porque disso depende a nossa sobrevivência, mas, sobretudo, porque a Vida é uma teia preciosa demais para ser vilipendiada.
Nas últimas décadas, apesar dos avisos persistentes de cientistas e ambientalistas, nosso recanto azul padeceu com a exploração desmesurada dos recursos naturais em nome da ganância de alguns poderosos, somada à ânsia coletiva por consumir mais e mais.
Uma nova consciência
Mas, felizmente, uma nova consciência vem se firmando, principalmente entre os jovens, haja vista o impacto das ideias defendidas pela ativista ambiental sueca Greta Thunberg. Com apenas 16 anos ela iniciou um levante pacífico para chamar a atenção das autoridades e alertá-las a respeito do futuro calamitoso que estão deixando para as gerações seguintes. Resultado: foi ouvida não só pela juventude em todo o globo, como também por líderes mundiais.
Em reverência ao Dia da Terra, convidamos a engenheira ambiental, educadora e especialista em sustentabilidade, Aline Matulja, para nos situar nesse cenário e nos contar do que é feita essa nova relação com Gaia. Espero que, a partir do bate-papo que você acompanha a seguir, possa repensar hábitos e descobrir possibilidades em seu cotidiano para tratar nossa casa comum com o zelo que ela merece.
Nos últimos anos, vimos surgir na mídia nomes até então desconhecidos: permacultura, agrofloresta, agricultura sintrópica, entre outros. O que esse movimento voltado para a terra nos diz sobre as transformações em curso no planeta?
A humanidade está se descobrindo como “parte”. Todos esses conceitos nos oferecem novas lentes para viver e até produzir bens imitando a natureza. Mimetizando sua lógica. É um movimento de busca pelo nosso papel dentro desse imenso e complexo ecossistema.
Na sua opinião, o que a humanidade precisa compreender mais profundamente para virar a chave: de predadores para cuidadores da vida na Terra?
A compreensão de que se trata de uma transição e que agora é preciso empreender esforços mais firmes em direção às premissas que já conhecemos faz tempo, mas que procrastinamos tanto em realizar. O planeta é extensão do nosso corpo e você não toparia encher seu corpo com tanta toxicidade! Quem já pratica o autoconhecimento e a transformação pessoal tem meio caminho andado na rota da sustentabilidade. É só transbordar essa sabedoria para além de si.
Se compararmos um alimento produzido num tipo de manejo que preserva a harmonia dos ecossistemas com outro alimento produzido no sistema convencional, quais diferenças ficam evidentes?
Um alimento produzido em um ecossistema em equilíbrio é fruto da plenitude daquele sistema. Ele conterá toda a potência nutricional e medicinal daquele contexto. Do mesmo modo, quando compramos alimentos agroecológicos ou orgânicos estamos financiando uma forma de regeneração do planeta que tem frutas, folhas, legumes como consequência. A princípio, é o que de mais efetivo podemos fazer para reduzir a contaminação dos nossos sistemas hídricos pelos tóxicos utilizados na agricultura convencional.
A ampliação cada vez maior dos produtos orgânicos, inclusive em supermercados tradicionais, mostra que as pessoas estão mais conscientes na hora de se alimentar? Essa conscientização engloba toda a cadeia envolvida nesse processo?
Sim! A informação está alcançando mais gente e os canais de venda vêm se consolidando. Vejo o aumento da compreensão por parte de profissionais de saúde e chefs de cozinha também. Ao estimular esse mercado, contribuímos também para que o agricultor esteja amparado a dividir com ele os desafios da transição para uma forma mais saudável de produzir alimentos.
Qual a importância dos pequenos produtores no resgate de uma vida mais natural e saudável, também comprometida com o bem-estar do planeta?
A prática de uso indiscriminado de agrotóxicos prejudica a todos, mas principalmente a vida no campo. Homens e mulheres estão continuamente expostos à inalação dessas substâncias durante sua aplicação. Por outro lado, a transição agroecológica surge como uma possibilidade não somente de agregar valor aos produtos, mas principalmente de colocar comida de qualidade e diversidade na mesa das famílias. É o que chamamos de soberania alimentar.
Que dicas você pode dar para quem deseja começar a cultivar uma horta caseira, nem que seja pequena, em apartamento?
A dica número um é plantar o que você gosta de comer. Faça uma lista. E de posse dela, pesquise o que precisa de quantidades mais moderadas de sol e espaço. Indico o Pé de Feijão, Organicidade e Carpe como iniciativas que têm kits prontinhos para dar esse empurrãozinho inicial.
Você acredita que Gaia esteja buscando um novo equilíbrio?
Gaia está sempre em busca de equilíbrio. Essa é a dança das florestas. Quando uma floresta está saudável, todos os organismos dela exercem uma função. O problema é que nós esquecemos a nossa. E, ao esquecermos, destruímos a função de outras espécies, dos rios, das montanhas. Nós é que devemos buscar um novo equilíbrio para a humanidade. E já estamos atrasados nessa missão.
Como educadora ambiental, quais são as principais resistências que observa nesse trabalho de esclarecimento e mudança das mentalidades?
Educação ambiental é promover o religare da humanidade com a natureza. Ou seja, como qualquer outro aprendizado, demanda abertura para novas sinapses. Essa é a principal resistência. A atual estafa das pessoas. Sentem-se potes cheios. É por isso que as práticas de meditação acompanham tão bem o trabalho de educação ambiental. Porque criam espaço para que mensagens de amor e cuidado com nossa casa/corpo/planeta penetrem.
Há quem diga que a força predatória da indústria é colossal e que a mudança de hábitos individuais tem quase nenhum efeito para a saúde do planeta. Como você responde a esse tipo de argumento?
Não é verdade que não há efeito nenhum. É importante lembrar que tomadores de decisão das altas cúpulas também são pessoas e que provavelmente não tiveram educação ambiental. Esta acontece em um gradual de escalas: do indivíduo, à casa, ao bairro, à cidade, ao planeta. Começar pela autorresponsabilidade é, portanto, uma estratégia para que possamos alcançar a escala coletiva e cidadã. Por exemplo: É pouco tangível para alguém que nunca teve oportunidade de observar o próprio consumo e geração de resíduos, lutar por uma política pública de compostagem. Mas há uma outra resposta, pura e essencial para esse argumento. Nós existimos aqui e agora. Portanto, cuidar do ambiente faz parte de existir. Assim como comer, dormir, evacuar. A alegria de ver seu resíduo orgânico se transformar em adubo é uma resposta fisiológica que nos diz que não temos outra opção.
Glossário da sustentabilidade
Agricultura sintrópica: sistema de cultivo agroflorestal no qual as plantas são cultivadas em consórcio e dispostas em linhas paralelas, intercalando espécies de portes e características diferentes, visando ao aproveitamento máximo do terreno e levando em consideração a manutenção e reintrodução das espécies nativas.
Agrofloresta: forma ancestral de cultivo que imita o que a natureza faz normalmente, com o solo sempre coberto pela vegetação, vários tipos de plantas juntas, umas ajudando as outras e dispensando o uso de venenos.
Aquecimento global: processo de mudança da temperatura média global da atmosfera e dos oceanos. Isso se deve ao acúmulo de altas concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera que bloqueia o calor emitido pelo Sol e o prende na superfície terrestre.
Compostagem: processo biológico de decomposição e reciclagem de matéria orgânica, como sobras de frutas, verduras e cascas de ovo. Ele gera o húmus, composto orgânico rico em nutrientes e usado para fertilizar o solo. Dá para fazer até em apartamento!
Economia regenerativa: sistema que propõe o reconhecimento do valor do meio ambiente, das pessoas e das relações entre estes elementos para os sistemas produtivos.
Energia limpa: energia renovável gerada sem a emissão de poluentes com o mínimo de prejuízo à natureza.
Mudança climática: transformações a longo prazo nos padrões de temperatura e clima do planeta em decorrência, principalmente, do uso de combustíveis fósseis e dos desmatamentos.
Permacultura: elaboração, implantação e manutenção de ecossistemas produtivos que mantenham a diversidade, a resiliência e a estabilidade dos ecossistemas naturais, promovendo energia, moradia e alimentação humana de forma harmoniosa com o ambiente.
Pegada de carbono: quantidade global emitida de dióxido de carbono (CO2) e outros gases com efeito estufa na atmosfera, associada ao produto no decurso do seu ciclo de vida e às atividades humanas.
Pegada ecológica: metodologia de contabilidade ambiental que avalia a pressão do consumo das populações humanas sobre os recursos naturais. É possível calcular a sua pegada ecológica utilizando a calculadora disponibilizada pelo portal da Ong de defesa ambiental WWF.org.br.
Pegada hídrica: metodologia para se mensurar a quantidade de água utilizada por pessoas, produtos, cidades e países. Você pode calcular sua pegada hídrica no site da Water Footprint Network: www.watercalculator.org.
Gostou desse olhar para as questões ambientais? Então, saiba como o Projeto Beth Bruno vem fomentando a agroecologia no norte do país.
Aline Matulja
Engenheira Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), ela sentiu na infância o chamado da natureza. O saber ecológico, contudo, só faria sentido se alcançasse as pessoas. Por isso, há mais de dez anos atua no engajamento ambiental de comunidades por todo o Brasil.
Coordena o projeto Banheiros Mudam Vidas, iniciativa de construção de banheiros para quem não os tem, e, por meio da consultoria Roda Ambiental, implanta a estratégia Lixo Zero em empresas e escolas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em sua página no instagram, compartilha conteúdos bem-humorados que escancaram nossa habilidade de sermos (ou não) mais sustentáveis. Além disso, é professora do curso online Sustentabilidade: Ecologia Profunda na Prática, produzido pelo portal yam.com.vc.
Contato
@alinematulja